sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Contos Quentes da Aldeia - sinopse e + Contos Quentes da Aldeia - sinopse e + 100%

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Livro por Carlos a.d. Carriço

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Descrição

Estamos perante um conjunto de contos variados que visam contribuir para a preservação da natureza, acabar com a desertificação e fixar na memória coletiva termos e conceitos que correm o risco de se perder. Google Books

Data da primeira publicação: 19 de junho de 2013

Autor: Carlos a.d. Carriço







ÍNDICE

1-Conto de Natal

2-O Rosto da Aldeia



3-O Ozendo e as Invasões Francesas



4-Fogo no Curral



5-Au feu au corral - Contes de notre village



6-Ozendo, do nosso desapego forçado



7-Quem não se lembra do ti Saraiva? ( T`siraiba na voz do povo)



8-O Ozendo o Benfica e o Futsal (futebol de salão)



9-È melhor assim



10-A vida no campo



11-Condenação injusta



12-Columbófilo



13-O Armador



14-O Descalabro























1-Conto de Natal







Era o seu tempo… da chuva, do frio, da neve, do gelo da humidade que para muitos trás o desânimo. Dos beirados dos telhados de telha vã pendiam os carapetos, quais estalactites, quais punhais apontados ao coração dos desprotegidos, quais gelados a saber a nada.

A Titina suportava com dificuldade quase com desespero aquele rigor de Inverno que este ano tinha vindo mais cedo. Enregelada sem sentir as extremidades do corpo lá conseguiu a custo desemaranhar-se daquele amontoado de trapos que lhe serviam de cama. A cambalear rebuscava e voltava a rebuscar todos os palmos daquilo que se dizia uma casa à procura de algum naco de pão rijo esquecido ou de alguma castanha apanhada algures na época do rebusco… Mas nada. Nem uma migalha sequer capaz da alimentar uma barata que fosse. Procurou no canto da lenha junto à pilheira da cinza algum galho, alguma francinha de giesta a que pudesse apuchar um palito. Mas nada… nem giesta, nem palito, nem galho. Era o desespero absoluto. Aninhou-se a um canto. Mesmo dali, que a cama não ficava a mais de um estender de braços tal era o tamanho da casa, de ao pé da lareira puxou para si as tiras de trapos e voltou a esquecer-se.



Sem saber bem onde estava, orientada pela luz que entrava pelo único buraco que dava luz à sua pobre e sombria habitação - o da porta que sempre aberta emparelhava com um postigo - saiu directamente para o curral enlameado com, o degelo da forte geada matinal. Maquinalmente sem saber até porque o fazia, cobriu os poucos metros que a separavam da imponente e bem arranjada igreja. As pessoa da aldeia orgulhavam-se em exibir com garbo a sua casa de orações, que contrastava com a singeleza e algum descuido das suas.

A Titina estava agora ajoelhada no único local onde ainda conseguia alguma paz de espírito e algum conforto. Encostada a uma das colunas que suportava o sobradinho e de algum modo também a ela, começava por se benzer e persignar só depôs tinha coragem de começar a falar com Ele. Olhando num ar de desconsolo para o presépio onde deitado em palhinhas jazia, entre musgos verdejantes e uma panóplia de pequenas e grandes figuras o Filho do Homem, questionava:

-Porquê?... Porquê eu?... Tanta fome, tanto frio, tanto sofrimento … - E a sua consciência, na voz do menino respondia:

- Tens que ter paciência se queres ganhar a glória eterna.

- Mas eu não fiz mal a ninguém para padecer assim.

- Tem paciência… Tem paciência, dos pobres é o reino do céus.

- Oh!... Mas eu começo a questionar-me se o José Saramago não terá razão… que Deus é Injusto, é Cruel é Vingativo, é Má Pessoa, sei lá mais o quê…

- Mas Ele não tem culpa de ser assim. Os outros é que o fazem assim. Neste emaranhado de quase sonâmbulos pensamentos voltou ali mais aconchegada a deixar-se enredar pelo mundo dos sonhos.



Titina estava agora junto à lareira da casa de Nhanho, uma casa farta onde o crepitar da lareira era «meia mantença». Ali abundava tudo o que naquele dia de Natal reconfortava o corpo e alma: filhoses, figos, nozes, peras inverniças, rebuçados finos, arroz doce, aletria, tapioca, farófias, leitão assado à moda do Ozendo, peru recheado, bacalhau com couves de Natal. Em pleno Inverno repetia-se em cada ano, desde há séculos, em casa de Nhanho o mesmo milagre: «contigua à cozinha virada bem a sul encontrava-se uma espécie de discreta salinha onde a luz do sol de Inverno incidia ainda com mais força coada por uma vidraça também ela centenária. Ali, quando tudo definhava pela força do frio e da inclemência das geadas, tudo floria e verdejava.



«Titina encontrava-se agora ainda que neste dia enregelado de Natal no centro do Éden onde cresciam lindos morangos nesta nave transparente. De nave em nave passa de uma para outra. Aqui cresciam amoras, ali framboesas em outra luzidios tomates mais além repolhudas alfaces e couves tudo em hidroponia. Mas também não faltavam flores, muitas flores: cravos, rosas, violetas, tulipas, gereberas, goivos lilás, jasmim, malmequeres, margaridas, orquídeas, e um sem número de tantas outras».



Por isso é que na casa de Nhanho no centro da mesa de Natal, ano após ano, década após década, século após século era colocada uma imponente jarra de variadas flores parecia a primavera no seu auge em pleno Inverno. Não era o «milagre das rosas» mas era um verdadeiro milagre das flores. A casa de Nhanho enfeitava-se assim para dar alegria à mesa onde não só os seu doze filhos tinham assento, mas também todos aqueles que não fossem consumidos pela inveja, tivessem pejo ou vergonha de entrar naquela casa de portas escancaradas para todos e sentar-se àquela mesa que afinal ficava posta de véspera e todo o dia de Natal.

Titina sentia o cheiro daqueles acepipes e só isso quase a reconfortava. Foi esse bálsamo ainda impregnado de anos anteriores que a fez pouco a pouco sair daquele estertor enquanto uma voz lhe ressoava ao ouvido: « acasa de Nhanho espera-te… A casa de Nhanho espera-te…A casa de Nhanho espera-te.



































































2-O Rosto da Aldeia







Em 1980 aquando da pesquisa da origem (etimologia) do nome de Ozendo, na Torre do Tombo, ainda então no Palácio de S. Bento, em Lisboa chegámos a esta hipótese curiosa:



A palavra terá tido uma evolução do nome ADOLSINDA que de origem germânica significa – terra de nobre senhora germânica. O nome evoluiu para Adosinda, Auzenda, Ouzendo ou Ozendo talvez em simultâneo, tendo estas palavras a mesma origem.



Outra hipótese menos fundamentada mas não menos interessante que colocamos

: «quem se posicione virado para o horizonte tem uma sensação de abertura para o mundo. Ora em latim, a apalavra oz, oris significa boca, abertura. Com a habituação poderá ter dado OZENDO.



Na enciclopédia luso brasileira, sobre o Ozendo diz-se: «esta aldeia é mais antiga, ao contrário do que muita gente julga»



Há indícios de que esta região limite do Ozendo já era povoada na era proto-histórica ( pelo menos há três mil anos). Existem vários vestígios que as pessoas da aldeia dão como adquiridos, mas a verdade é que muitos deles, que passam despercebidos poderão ser muito antigos (por exemplo uma estrada romana que ligava o Sabugal ao Soito) ou ainda mais antiga, quiçá, do tempo dos nossos antepassados das gravuras de Foz Côa a existência de uma ligação entre a nascente do Rio Côa e a nascente do Rio Águeda. Nesta altura, seguir o curso dos rios, bordejados de frutos silvestres, ricos em caça e pesca era seguramente a maneira mais fácil de sobreviver. Quando os alimentos escasseavam no curso do rio procurava-se outro. Tinham todo o tempo do mundo e nada os prendia a nenhum sítio em especial.



É uma zona peculiar, dada a sua proximidade com Espanha, por causa do contrabando e não só. Invasões Francesas e outras escaramuças da raia.



Nas memórias paroquiais de 1755, dizia o cura da época a propósito destas terras: "as serras de Furdes são tão eminentes e dilatadas que nas suas concavidades se conservam certas povoações incógnitas, que há pouco tempo foram descobertas, cuja gente se diz não tinha conhecimento da religião católica, e o primeiro que a catequizou se diz com certeza que fora um bispo de Coria chamado Fulano Poras por serem do seu bispado e ainda hoje se diz das ditas pov. que são El Mundo Nuevo en Castilla"



E ainda : "Nestas ermidas [da raia], que eram de grande devoção, se encontravam e se faziam votos contra as guerras e «pela gafanhota»(sic), diz o mesmo pároco - as duas pragas que os habitantes mais temiam ....



Durante vários anos apesar de serem terras do Reino de Portugal, foram Padres Espanhóis a estarem à frente das paróquias e faziam os termos em Castelhano, já se vê!!! isto no século XVIII





























































3-O Ozendo e as Invasões Francesas




Como prometemos, quando fizemos uma resenha Histórica sobre o Ozendo, agora, que se cumprem 200 anos da passagem da batalha do Gravato e da fuga da soldadesca – muitas vezes acossada pelas populações locais na nossa região e também aqui pelo Ozendo - vimos cumprir o prometido tratando este assunto.



Reza a lenda, (quem da nossa geração, não se lembra de ouvir falar de tesouros enterrados algures pelos soldados acossados e tementes das populações que os perseguiam? Eu por mim quase ia jurar que até sei, com o imaginário infantil, onde esse tesouro está escondido. O ti João Cocheiro também supunha saber onde estava. Pelo menos levou os cunhados, o ti Bel e o ti Benjamim a pensarem o mesmo, já que passaram uma noite a cavar debaixo de um barroco à procura do dito). Nos seus ouvidos ainda ressoavam ecos, certamente contados por pais ou avós que sofreram na pele os horrores da guerra, histórias mais ou menos verídicas.











Em cima: O Ti Bel (Abel) Ti Benjamim, Ti João Cocheiro (João Pereira)




Ora as lendas, todos bem sabemos, têm sempre um fundo de verdade e não seria nada inverosímil que houvesse verdadeiros tesouros escondidos no nosso limite.

E porquê? Perguntaremos nós. A última e derradeira batalha com as tropas comandadas por Massena que garantiu livrar-nos do jugo de Napoleão Bonaparte, mau grado, os benefícios proclamados por Descarte, Voltaire Rousseau e Montesquieu – igualdade, liberdade e fraternidade – só terem chegado uma década mais tarde a Portugal, foi a Batalha do Gravato na margem direita onde hoje se situa a barragem do Sabugal.


 Muitas peripécias de lado a lado dos contendores se verificaram:



A 3 de Abril de 1811”as tropas de Massena depois de levantado o intenso nevoeiro são surpreendidas, pelas tropas anglo lusas que atravessando a vau o rio Côa na zona das Pladas – pensamos que junto ao moinho do Saloio até à quinta da Carrola - atacam pela retaguarda desbaratando por completo os batalhões franceses em fuga.



















O Jaques, era um típico jovem oficial francês, daqueles a quem a barba rija chega quase até aos olhos. Fazia parte do batalhão de infantaria comandado por Merle. Jaques desde há muito que dando ordens aos seus subalternos vinha arquitetando um plano para quando tudo acabasse, levar um bom espólio até terras da Gália. Ele sabia que as vicissitudes da guerra trazem sempre cometimentos atrozes por isso já nada o perturbava.


Estamos a dezanove de Março de 1811. Colunas marchavam ao ritmo a que podiam e as deixavam:
«Nenhuma pequena aldeia ou povoação, escapa a esta onda de assaltos, em busca de víveres para a sobrevivência das tropas francesas. Desde as batalhas da Redinha e de Foz de Arouce, que os franceses não conseguem grandes quantidades de alimentos, para conter a fome de mais de quarenta mil homens. Apenas nos campos e encostas de Poiares, conseguiram algumas ovelhas e cabras velhas, que cozeram em vinho com cebolas, mas que nem o cheiro chegou a toda esta tropa esfomeada. Ontem foram assaltadas dezenas de povoações. Arganil, Sarzedo e todas as povoações do flanco direito das tropas francesas foram ontem assaltadas, mas o abastecimento foi fraco.

Os assaltos laterais ao movimento das tropas, é uma estratégia de defesa da movimentação dos vários Corpos do exército Francês, cada um comandado por um general, sob as ordens do comandante em Chefe, Marechal Massena.

Na pequena aldeia de Alvoeira, da freguesia de Mouronho, o assalto à capela de Nossa Senhora das Neves, destruiu todas as Imagens em pedra de Ançã, fazendo desaparecer as cabeças».



Nas antevésperas da disposição das tropas francesas na margem direita do rio Côa entre as Pladas e o Gravato, o Capitão Jaques e a sua companhia fazendo uma sortida rápida assaltaram a Sé catedral da Guarda onde saquearam tudo o que puderam e de fácil transporte - desde cálices em ouro e prata a candelabros até as hóstias já consagradas não foram poupadas. Alguns soldados mais gananciosos e ignorantes, pensando que as figuras de talha dourada do altar mor fossem de ouro maciço não se coibiram de as decapitar, guardando umas delapidando outras.


Os saques das aldeias vilas e cidades, são transportados em dezenas de burros, mulas e carros de bois, levando à corda as ovelhas, cabras, até coelhos e cães.



Por seu lado, as populações cumprem as ordens do general Wellington, transmitidas pelas Milícias Portuguesas de abandonarem as casas e de se refugiarem nas serras, levando tudo o que possam, destruindo ou escondendo tudo o que fica.



O Manuel José Tate e o Domingos Tate, encarregam-se de organizar as milícias que, alimentadas nos últimos dias à base de azedas, meruge e rosas de Nossa Senhora e acoitados pelas moitas do Cabeço Calvo lá se vão aguentando. Seguindo pelo Ribeiro Dindinho atravessam a Fonte Fria e os Ameais descem a Devezinha e surpreendem a comitiva do Capitão Jaques e do seu subalterno Michel Platini, quando estes em fuga na direcção do quartel general, sediado em Alfaiates fazem ainda uma última sortida pelo Ozendo que, ficando no caminho em retirada, parecia ser uma aldeia com abundância de víveres.



Enquanto isso, o José Manuel Antono e o Chitas, que patrulhavam o cume da Fieiteira viram-se obrigados a mesmo ali, chacinavam à queima roupa, dois militares franceses perdidos - que não resistindo ao encanto daquela água pura e cristalina ousaram debruçar-se na nascente do Galgorricho - quando estes em reacção, se preparavam para disparar os arcabuzes... Eram uns ou outros





O destacamento de Merle onde se integrava a Companhia do Capitão Jaques perfilava-se a leste encostada às tropas de cavalaria, no morro sobranceiro ao Gravato de frente para a margem do Côa, quando de súbito sem que tal, fosse de todo esperado, começaram a receber canhoada pelo flanco esquerdo do batalhão de infantaria comandado por Beckwith com tropas inglesas e portuguesas.



Entretanto, na retaguarda no sítio do Teixo, a quatro quilómetros para o lado da fronteira, estava estacionada a parafernália: - os parcos víveres, os saques das aldeias vilas e cidades, as dezenas de burros, mulas e carros de bois, ovelhas, cabras, coelhos e cães. As raridades em ouro, prata as pedras douradas de ançã, incluindo as da Sé da Guarda – todo um espólio riquíssimo “varrido” desde a retirada de Lisboa.



Quando ribombaram os tambores para a fuga, foi um vês se te avias para enterrar os artefactos mais pesados e difíceis de transportar num local de fácil identificação.



Disso, o Capitão Jaques, tinha encarregue o ajudante Michel Platini homem fiel e desembaraçado. Este, à cautela já de véspera tinha mandado uma quadra de soldados abrir uma vala recôndita lá mais abaixo numa carvalheira bem cerrada entre quatro negrais centenários.



Na fuga apressada só houve tempo para recolher as peças mais preciosas. Na confusão entre vacas, mulas burros cabras, houve tempo para esconder no meio de palhiço apanhado à pressa - as peças de ouro e prata mais pesadas cruzes, cálices, candelabros, salvas, e até pesadas correntes de ouro – em cima de carros de bois.



«Ala que se faz tarde». Foi o salve-se quem puder - como é costume dizer-se parafraseando o Ti Carrapatinho que noutros momentos de aflição tratava de pôr de sobreaviso quem o quisesse ouvir.



Foi um derrubar de paredes aqui, um saltar cômaros além, atravessar ribeiros e declives, numa frente desordenada de quilómetros de largura. O Jaques que se juntara a Michel ainda no início da debandada, seguiram por entre prados e lameiros em direção à Nabijola, contornaram o Pião escudados por altos muros de pedra, até serem barrados pelas milícias que descendo a Devezinha seguiram no seu encalço. Estas com Domingos Tate à frente dos seus homens, porque surgissem de surpresa, do emaranhado de casas que tão bem conheciam, foram dar de caras com o capitão Jaques e as tropas. Enquanto se travavam de razões entre, o atacas tu ou ataco eu, mais atrás na coluna o Michel encarregava-se de levar a cabo aquele que era o plano B, esconder fosse como fosse, o tesouro amealhado, ou melhor espoliado. Uma secção intermédia da coluna encarregou-se de proceder a uma manobra de diversão, simulando que atacavam pelos flancos as ruas desertas da aldeia. Do outro lado da coluna, mais atrás, numa confusão mais ou menos aparentemente organizada, quanto discreta, a soldadesca esgueirava-se num vai e vem contínuo levando tudo o que pudessem. Enquanto isso os homens habituados a abrir as trincheiras cavavam e enterravam num corrupio estropiado as preciosas peças que lhes faziam chegar. O Michel Platini que entretanto se avizinhara, tomava notas da localização: «fim de quelha, a Poente, esquina de casa, a Sul, parede rural, a Norte e portal de saída, a Nascente».



Sem grande alternativa enovelado por um emaranhado de sentimentos à mistura com o cansaço fome e sede que o debilitavam na sua capacidade de reação, o Capitão Jaques deixou-se voluntariamente ficar por estas paragens num turbilhão de sentimentos dividido entre o refém e o desertor, em troca de uma paz desejada por ambos os lados e da progressão das suas tropas em direção a Alfaiates. Foi mantido em cativeiro numa espécie de caverna de uma lúgubre habitação no centro do Ozendo onde recebia, é certo comida por uma portinhola mas valha ao menos em quantidade e qualidade aceitável.



Foi libertado poucos dias depois pela população, após ter dado, de espontânea e livre vontade a conhecer aos vizinhos da povoação parte do tesouro que sabia escondido. Veio a casar com uma aldeã Maria Alves Tate, também ela descendente de um oficial Inglês de baixa patente. Deixaram descendência, da qual, alguma ainda hoje se mantém na aldeia.



A parte do tesouro que continua escondido um pouco por todos os arrabaldes da povoação, ficou para alimentar a lenda à espera de ser resgatada.



































































4-Fogo no Curral



- Acudam!... Acudam!... Há fogo!... Há fogo!...Gritavam várias vozes em desassossego, cada uma para seu lado.

- Alguém que vá tocar o sino a rebate - gritava o Cruz, que se apressava já, como sempre, a organizar o combate ao incêndio. Homem de trabalho, entroncado, não muito alto, rude quanto baste para ombrear com a natureza do seu trabalho na labuta do campo. Mas alto lá,... que quando veste o seu fato domingueiro parece um autêntico galã capaz de fazer inveja a qualquer um e por as moças da aldeia e arredores a “cata dele” - Ó Aurora ide vós buscar os latões, baldes, caldeiros e tudo com que se possa acarretar água. Diz ó Manel Tó-Tó que traga enxadas e tudo o que poder, a ver se não arde a casa de seu pai.

As mulheres meio atarantadas dirigiam-se em várias direcções e num abrir e fechar de olhos, o pio da fonte, que encimava a praça, estava rodeado de toda a espécie de vasilhame. Numa azáfama própria só de uma situação daquelas, como formigas em carreiro, homens mulheres e até crianças afadigavam-se no combate ao incêndio de baldes e latões em punho. O Léi Peto, na esquina de sua casa, malandro e brincalhão, como sempre, a modos que a tentar organizar a leva de gente, fazia que trabalhava e disparava ordens em todas as direções:

- Ó Zefa corre que te ardem as saias. Ó ti Céu olhe que a sua casa também arde. Já cheira a chamusco, são as barbas do ti Cristóvão a arder.

-És um bom malandro é o que tu és. Vai lá ajudar a apagar o fogo - gritavam quase em uníssono várias pessoas.

O Tonho Zé, "o Canhoto" poisa o latão de desaguar cheio de mel e cera de um favo que acabara de tirar de um castanheiro das Eiras, pegou num calhau e atirou uma barrocada que fez zunir, propositadamente, tal era a pontaria, aos ouvidos do Léi.

- À malandro se não te calas!...

- O Léi a ganir, qual cachorro, aos saltinhos:

- Ai!...Ai!... Está bem... Já vou.

Era um vai e vem constante. Faziam a ida num pé e a vinda noutro. Era um combate desigual...



Tinha sido ateado numa brincadeira de garotos, que na ausência dos pais ou de qualquer outro adulto pela vizinhança, para ali tinham ficado ao Deus dará, sozinhos abandonados à sua sorte e à sua capacidade de imaginarem e inventarem entretenimentos.



O José Augusto, o mais crescido entre todos, com seis anos, queria mostrar aos outros como era valente e já sabia fazer grandes coisas. Foi buscar os “palitos” e toca de mostrar do que era capaz. No fundo a intenção dele era apenas a de acender uma pequena fogueira como aquela que todas as manhãs a mãe acendia à lareira, mas... de repente na sua inocência viu as chamas alastrarem num ápice. Foi então que num misto de garbo e de medo olhou para a “sua gigantesca obra, capaz de meter até medo aos grandes”.

O fogo lavrava num “triato” de lenha bem ressequida que já ali estava alguns anos e que por certo deveria servir para atear a lareira por muitos mais. A lenha era o menos,... que giestas e carvalhos abundavam, era só apanhá-los e trazê-los, o pior é que logo encostado estava o palheiro a abarrotar de palha e feno e mais ao lado as casas de habitação.

Toca de deitar água para cima. Quando as labaredas estavam no seu auge, parecia que quanto mais água se deitava, mais o fogo ateava. Contudo não era assim, tal era abundância de água, não obstante a fonte de abastecimento ainda ser longe, as labaredas acabaram por sucumbir afogadas, evitando propagar-se.

Para isso, muito tinham contribuído aquele punhado de almas, que numa só, irmanadas, se fundiram, formando uma cadeia humana de solidariedade desde o fontanário onde abundantemente se enchiam os recipientes até ao curral onde eram esvaziados. O seu mais forte elo de ligação tinha sido sem dúvida o Cruz que num acto temerário tinha subido para o muro sobranceiro ao local onde lavrava aquele inferno, a fim de se colocar no local estratégico, mesmo que para isso fosse necessário pôr em risco a própria vida.


Já a acalmia se ia apoderando de todos, eis senão quando se houve um inusitado zumbido que se aproxima, e de mais em mais se torna claro. É o velhinho e lento autotanque dos bombeiros, que por fim, não obstante a boa vontade dos voluntários, lá chega, meia hora depois, pondo de novo tudo em alvoroço.

Os Soldados da Paz limitam-se a confirmar a extinção das chamas e a fazer o rescaldo. O comandante Rasteiro, rodeado por aquela gente que ainda arfava apoquentado, tratou de saber: - Há alguém ferido ou mal disposto?... Ninguém se queixou e todos respiraram de alívio. Só o Léi Peto esboçou um gemido:


-Hãããein!.... Hããein!... Ainda sentia a pedrada a zunir-lhe ao ouvido.

Assim decorria pacatamente a vida naquela pequena aldeia - o Ozendo. Fora um ou outro acontecimento de tempos em tempos, a vida naquele lugar lá para os lados das terras de Riba-Côa, perto da raia de Espanha, entalado entre a Serra da Estrela, a Serra da Malcata e a Serra das Mesas, era de muita alegria e felicidade para toda a gente, não obstante as muitas privações e frugalidade porque tinham que passar. «Esta era uma aldeia situada em um vale verdejante muito bonita, airosa e onde as pessoas viviam com mais asseio que em qualquer outra», como gostavam de lembrar orgulhosamente os seus habitantes parafraseando um ilustre escritor filho da terra.























5-Au feu au corral - Contes de notre village



Un hommage aux émigrants et leurs descendants. Par égard pour eux ici de la traduction.

Nous espérons que vous apprécierez. Les autres ont la possibilité de pratiquer le français, y compris qui écrit ces lignes.





-Acudam!... ACUDAM!... Au feu!...Au feu!...Chanté l'inquiétude de plusieurs voix, chacun de son côté.

-Quelqu'un qui sonne la cloche pour remboursement - crié Cruz, qui était pressé, comme toujours, d'organiser la lutte contre l'incendie. Homme travaillant, trapu, pas trop fort, assez rude pour se frotter à la nature de leur travail dans le dur labeur du champ Mais ô là...là ... que s'habiller meilleure tenue, semble une véritable idole en mesure d'envie à tout le monde et aux jeunes femmes du village et les environs la « cata dele »- Aurora allez vous chercher les bidons, seaux, caldeiros et tout ce qui peut servir conduire de l'eau. Dit o Manel Tó-Tó qui apportent les houes et quelle que soit la puissance, pour ne pas brûler la maison de son père.

Un peu maladroit les femmes étaient eux-mêmes dans plusieurs directions et en un clin de œil, et le réservoir vers le haut de la place était entourée de toutes sortes de récipients. Dans l'effervescence d'une situation seulement de lui-même, comme des fourmis en carrièrre, des hommes des femmes et des enfants même s'est engagé à la lutte contre l'incendie des seaux et bidons à la main. Léi Peto, au coin de sa maison, «malandro» joueur , comme toujours, les modes qui tente d'organiser tout du peuple, il semblait à tarvaier et commande il jeta des ordres dans toutes les directions de tir :

- Zefa fonctionne que vous brûlez les jupes. Regard TI Céu que votre maison brûle aussi. Déjà reeks de flambage, c'est barbes ti Christovão brûlant.

-Vous êtes un bon « malandro », est ce que vous êtes. Vas y pour aider à éteindre le feu - s'écria presque à l'unisson plusieurs personnes.

Tonho Zé, « le Gaucher » Il déposa le seau plein de miel et de cire d'un nid d'abeilles qui vient prendre une châtaigne das Eiras, ramassa un caillou et jeta un «barrocada » qui fait le buzz, volontairement, tel était le but, prés les oreilles de Léi.

- «Malandro» taisez-vous ou vou verrez!...

-Léi gémissement, quel chien de sauter :

-Oh!...Ah!... D'accord... J’y vais.

C'est une constante qui vont et viennent. Est allé marcher et est venu dans un autre.

C'était un combat inégal...

A été créé dans une amusement de garçons, qu'en l'absence des parents ou autres adultes par quartier, car y a-t-il eu où Dieu donne, seul, abandonnées à leur sort et leur capacité à imaginer et inventer des divertissements.

José Augusto, plus grandi parmi tous, six ans d’âge, a voulu montrer aux autres comment il était courageux et déjà su accomplir de grandes choses. Est allée pour chercher les «amorphe» et joue pour montrer qu'il était capable des grands choses. Dans le fond l'intention de celui-ci était juste éclairage un petit feu semblable à celle que tous les matins la mère allume la cheminée, mais... tout d'un coup dans son innocence, il a vu des flammes à répliquer en un clin de œil. C'est alors qu'un mélange de peur et garbo a cherché « son œuvre gigantesque capable de mettre la peur en place adultes ».

Le feu a fait rage tout en un « triato » du bois de chauffage et sèche qu'il y avait déjà quelques années et que de droit devraient servir à définir la cheminée pour beaucoup d'autres annés. Charbon de bois était le moins... que balai et de chênes ont été abondantes, il suffisait les chercher et les ramener, le pire, c'est que lorsque ce penchent était une botte de foin entassé avec paille et le foin et plus à côté des maisons.

Va pour jeter l'eau vers le haut. Lorsque les flammes ont été à son apogée, il semblait que de plus d'eau, déversée plus allumé le feu. Toutefois il n'était pas si, ceci l'abondance de l'eau, en dépit de la distance de la source, les flammes succombant finalement noyé, en évitant la propagation.

Pour cela, beaucoup avait contribué une poignée d'âmes, qu'un seul, étroitement liés, fusionnées, formant une chaîne humaine de solidarité depuis la fontaine où abondamment si rempli de conteneurs jusqu’au corral où ils etait vidés. Le maillon fort avait été sans doute Cruz. Sur un acte audacieux avait atteint le mur donnant sur l'endroit où labouré un enfer afin de se mettre en place stratégique, même si cela était nécessaire pour mettre sa vie en danger.

Déjà tous était calme, c'est moins que s'il y avait un bourdonnement inhabituels qui se rapproche, devient plus clair. Le vieux et lent tank des pompiers, qui, malgré la bonne volonté des volontaires, il arrive enfin, une demi-heure plus tard. Met nouveau tout à fait beaucoup de bruit.

Les casques bleus sont limités afin de confirmer l'extinction de la flamme et faire la suite. Commandant Rasteiro, entouré de ceux qui ont des singnes de fatigue, est venu à connaître :

-Y a-t-il quelqu'un blessé ou malaise?... Personne ne se plaint et tout le monde respire avec soulagement. Seul Léi Peto a mis au point un gémissement :

-Hãããein!... Hããein!... Toujours senti le profond fredonnant à son oreille.

Alors pacifiquement était la vie a cette petite – Ozendo- le village. En dehors de l'un ou tout autre événement de temps à autre, la vie dans ce lieu-là pour les parties des terres de Riba-Côa, près de strie d’Espagne, pris en sandwich entre la chaîne de montagnes Serra da Estrela, la Serra da Malcata et la Serra das Mesas de la scie, était de grande joie et bonheur à tous, malgré les nombreuses privations et frugalité par les queles devaint passer. « C'était un village situé dans une vallée verdoyante très belle, aérée et où les gens vivaient avec la propreté plus que tout autre " Comment aimé pour rappeler à la population locale avec fierté pour paraphraser un auteur illustre fils de la region.

























































6-Ozendo, do nosso desapego forçado





Naquela manhã de princípio de Outono, o José Augusto de mão dada com a sua mãe, dirigiu-se à escola situada ao fundo da aldeia. Era um edifício encantador, tinha sido construído à custa das contribuições desinteressadas e generosas dos seus vizinhos, quando ali se começaram a fazer eco, nos longínquos anos, os ideais republicanos do ensino gratuito para todos - é que para se fazer uma revolução cultural, ou outra qualquer que seja, não basta proclamá-la com fervor como fazia aquela gente lá de Lisboa que nos governava, é preciso muito mais que isso, é preciso levá-la à prática - disso logo se deram conta aquele punhado de almas.



Com o pouco dinheiro de poucos, a muito boa vontade de muitos e o trabalho esforçado de todos, em três tempos viram a sua obra sublime levantada, e logo aquela escola, qual universidade do lugar, se tornou famosa por léguas em redor tal era a afluência de jovens de palmo e meio das aldeias vizinhas, ávidos por beber o elixir da sabedoria e das letras. Da Torre, de Quadrazais, de Vila Boa, do Cardeal, de Pouca Farinha, de Rendo, de Soito e até de Vale de Espinho faziam diariamente uma romaria aquela aldeia, «situada em um vale verdejante – o Ozendo -» como a definiria o Doutor Manuel Joaquim Correia, na sua obra publicada e amplamente divulgada.



O José Augusto sonhava com o dia em que a escola viesse também a ser sua. Sonhava poder brincar nos belos canteiros que ladeavam as escadas circulares que davam acesso à porta, para lá da qual se aprendiam a ler as histórias que tanto apreciava. Sonhava também, poder plantar e regar lá,… nos canteiros, flores as mais variadas e outras plantas que veria todos os dias crescer.



Porém, finalmente o dia chegara.



Meio escondido atrás da mãe, subia agora, ansioso, as escadarias redondas, que embora com apenas meia dúzia de degraus lhe pareceram intermináveis. Num acto de aparente coragem, especou-se à porta, como que para contemplar o ambiente e se familiarizar com ele, num acto desafiador aos grandes, que bem perfilados de batas alvíssimas se sentavam nas carteiras. Ainda sob o olhar atento e simultaneamente acusador daqueles “grandalhões”. Por fim lá entrou.



Apertando sempre e cada vez mais a mão da mãe e insistindo em se esconder atrás do seu avental florido, juntos, dirigiram-se à secretária do senhor professor.



- Muito bom dia - adiantou o professor.



- Muito bom dia, nos dê Deus, Senhor Professor - retorquiu a Maria Cláudia.



- Então o que a traz por cá - insistiu o professor solícito.



- Ó senhor professor, vinha ver se inscrevia aqui o nosso rapaz na primeira classe, que ele anda mortinho por aprender as letras.



O José Augusto sentiu o seu coração dar um baque. Algum mau pressentimento... Mas há-de passar...



- Que idade tem ele? -questionou o professor.



- Vai fazer sete anos - adiantou a modos que a medo a Maria Cláudia.



- Então quando é que os faz? -indagava o professor.



- É só a 13 de Abril do ano que vem - respondeu a Maria Cláudia.



- Então ainda tem muito que esperar -ironizou aquele- só para o ano. Este ano já não há vagas, estão todas preenchidas. Sabes Maria, há muita canalha que vem de fora. Além disso só se pode inscrever com sete anos feitos.



Pronto!... Cá estava a confirmação do mau pressentimento do José Augusto. Agora, o coração parecia correr a galope e querer saltar fora do peito. As picadas que pareciam agulhas afiadas sucediam-se umas atrás das outras. Ele nos seus seis anos, bem queria falar, bem sentia até necessidade de gritar a sua revolta, mas o coração constrangido e o estômago apertado, não o deixaram. Que grande desilusão... Fora a primeira da sua vida, que se lembre. Nem os muitos tombos e quedas, nem a faca que espetara no queixo, de que tão bem se recorda, ao tropeçar num degrau das escadas de sua casa, quando ao subi-las, na sua torpeza de criança, lhe trouxeram tanto sofrimento, tanta amargura, tanta desilusão. A apreensão e a revolta era infinitamente maior mesmo de quando, quais aves agoirentas, o rodeavam carpindo “coitadinho se a faca se espetasse um tudo nada mais atrás, morria”.





O José Augusto ainda está desesperadamente à espera de se conformar com esta despedida. A angústia e a ansiedade apoderam-se dele com frequência. A solução passa por dar uma escapadinha às origens, sempre que pode, nem que seja só, para respirar aqueles abençoados e puros ares, espairecer, as vistas na riqueza de tanto arvoredo e paisagens verdejantes sem igual. Assim sim!... renasce-lhe uma alma nova. Sim, ele prefere retornar aqui para reganhar forças mesmo quando na diáspora - ora aqui, ora ali, quer seja em Bruxelas, em Munique, em Paris, Ile-de-France em New York, New Jersey, Califórnia, ou até Benguela, Luanda e Catete - tal qual o conterrâneo Manuel António Pina, que diz ter tido que nascer outra vez, fora da sua terra, para se sentir vivo.





Que grande alvoroço com que se acordara neste dia lá em casa!... parecia - e estava mesmo - tudo de pantanas. Camas desmontadas, roupas dobradas e sobrepostas em camadas, malas arrumadas umas, outras em arrumação, sacos de batatas, de feijão, de castanhas, de gravanços tudo para ali encostado não sabia muito bem porquê!... O meio da casa estava um autêntico labirinto ele no seu tamanho minúsculo perdia-se nele. Até a salgadeira andava a monte com os restos da desmancha do porco à volta com chouriços, farinheiras, morcelas e o saborosíssimo entrecosto curtido.





... Ao colo da mãe?... É como quem diz..., isso era o que a mãe lhe queria impor à força, que ele não estava quieto nem por um momento. Parecia ter bichos carpinteiros, como lhe repetia.



Embora ele não compreendesse ainda o que se estava a passar, só sabia que o momento era de grande agitação, um misto de festa e de preocupação e isso, ele não queria deixar passar ao lado.



- Está quieto, Zé olha que me sujas a roupa toda -resmungava a mãe.



- Oh!... Deixe-me... - Era quanto o José Augusto tinha para dizer.



- Olha que fazes uma asneira e levas uma nalgada. Se não estás quieto, digo ao teu pai.



- Diga!... que me importa?... Ele não a ouve - era a vez de ele resmungar. Não que ele fosse mal educado por sistema, mas porque sabia que naquelas circunstâncias, num misto de euforia, de azáfama e de preocupação, tinha o direito e sobretudo a liberdade de responder como bem entendesse porque sabia que nenhum mal viria ao mundo.



Entretanto, traquinice para aqui brincadeira para acolá, sem saber como, pareceu-lhe ver, ao olhar pela janela, tudo a ficar para trás. Estaria com alucinações? Estaria ainda na cama a sonhar?... Nada disso. Sem se dar conta tinha desengatado e destravado a camioneta, tudo num ápice. Esta começou de imediato a engolir centímetro a centímetro metro após metro, ganhando cada vez mais balanço, em direcção ao Ribeiro Chão de Porto, lá ao fundo do acentuado declive.



- Acudam!... Acudam!... Aqui d’el rei. Ai quem acode... Valha-me Deus... Jesus, Maria e José nos valha... Acudam... Socorro... Socorro.



O José Augusto atarantado e surpreso, via sua mãe esbracejar, virando-se para um lado e para o outro, para frente e para trás sem perceber o que se estava a passar.



O Germano que estava lá atrás em cima da carroçaria a dar uma ajuda na arrumação dos escassos móveis, com a destreza que lhe era habitual, num abrir e fechar de olhos, saltara para o chão, correra para a cabina agarrado ao taipal e conseguira deitar a mão ao fecho da porta tentando desesperadamente abri-la ao mesmo tempo que puxava para trás, especando-se com os pés no solo que teimava em escapar-lhe, na tentativa de fazer parar aquele monstro. Em vão… Ele que era um homem possante, que já tantas vezes fizera parar, o seu carro de bois em circunstâncias parecidas bastando-lhe agarrar-se às aduelas, sentia-se agora impotente. Era escusado. Não via meios de salvar a mulher e o filho de morte certa esborrachados lá em baixo contra um qualquer freixo ou amieiro que bordejavam o ribeiro. Cada vez a camioneta embalava mais. Agora, ora pendurado na porta, ora fazendo que ainda controlava a corrida, insistia em gritar:



- Ó mulher saltai a baixo. Abre a porta – encorajava ele.



- Não abre – respondia a mulher, engalfinhando a mão em tudo o que era pinchavelho, menos naquele em que devia. E a camioneta cada vez embalava mais... e mais.



- Abre o vidro e dá-me cá o garoto, depois salta tu - gritava o Germano em desespero de causa, já a suar e prestes a entrar em pânico. Pois sim. Era a mesma coisa que nada nem a Maria Cláudia prestava atenção às suas palavras nem ele se fazia sequer entender. Era um pandemónio. Até que:...



- Pronto. Pronto. Não foi nada - ouvia balbuciar a seu lado com uma voz tranquila e assombrosamente calma, já com uma mão no travão outra no volante, Jaime Peixoto, o motorista, que entretanto depois de se debater lá atrás com a carga mal acondicionada saltara da carroçaria directamente para a cabina sem fazer alarido e discretamente, conseguiu sentar-se no lugar, que afinal era o dele.



- Ufa... - Respiraram todos de alívio. Enquanto isso o Germano estatelava-se no chão, projectado pela travagem brusca do veículo, já na subida que ladeava a Tapada Ti Zé Vaz. Ao mesmo tempo que praguejava, raios e coriscos circulavam a sua aturdida cabeçorra, que parecia agora, pesar dez vezes mais:



- Porra!... Porra!... parecia que já estava quase parado e ainda dei um trampásio que me espaparrei ao comprido - clamava, virando-se agora para o José Augusto, enquanto tentava acalmar-se - Raio do garoto que nunca está quieto…



- Depois das últimas arrumações na caixa da velhinha e simpática Berliet, após muitas e chorosas despedidas, seguramente de mais de metade da aldeia,… lá arrancaram finalmente para onde parecia ser o fim do mundo.



- Olha Pai, o que é além naquele monte?



- É Guarda, filho, e lá no ciminho vê-se o castelo. Estás a ver?



- Parece já ali… não parece?



- Parece!?... Parece… que o diga o Tio Manel Tate, que quando ia pagar o foro da Quinta do Prado Fundeiro, ao feitor do Conde Tarouca, lá no Solar do Lactário com o carro das vacas carregadinho de centeio, demorava um dia inteiro.



- Tanto tempo pai?... Então além deve ser o Cabo do Mundo.



No entanto, o rumo era tão só, a cidade mais alta, qual baluarte, sentinela sempre vigilante, em defesa do solo pátrio com o altaneiro castelo, agora reduzido àquela imponente torre de menagem que se vislumbra apenas à distância de umas chancas de gigante, lá ao cimo de outeiros e colinas, com a altivez de quem está no topo do mundo.



Era o começo de uma nova vida completamente diferente, tão diferente quanto o é, a mudança de um pequeno mundo, a aldeia, remota, verdejante, airosa, plena de liberdade - em suma paradisíaca - para o anonimato da fria, forte, fiel farta e formosa mas ao mesmo tempo austera cidade da Guarda, com um corrupio de acontecimentos macabros e um polícia a cada esquina.

No Outono seguinte, por ironia, ali estava ao colo da mãe, após terem carregado todos os tarecos, na plataforma-caixa de uma camioneta de carga, já do tempo da guerra, daquelas que pareciam andar de calças arregaçadas. O destino quis que esperasse pela partida, mesmo ao fundo das escadas que ele tanto desejou, um dia após outro, subir e descer com a sacola carregadinha de livros e cadernos. Agora já nem tinha coragem de olhar para lá, já pressentia a nostalgia que lhe iria roer a alma pela vida fora. Ali estava ele, vivinho da Silva, pois então, sempre sobrevivera.































































7-Quem não se lembra do ti Saraiva? ( T`siraiba na voz do povo)





Quem não se lembra do ti Saraiva (T`siraiba) e sua camioneta, da carreira com tromba e tudo? Quem não se lembra do ti Chico que até arranjou um chicote comprido, com o qual da porta de trás, mesmo em andamento, tentava espantar a canalha que se pendurava nas grades da camioneta.

Há já uns tempos fomos descobrir esta passagem deliciosa da nossa infância, meados do século XX - escrita desde Lisboa, sabemos lá por quem, mas que até podia ser da autoria de um qualquer de nós. Basta para isso, que nos situemos na Ceboleira (sobleira) quando esperávamos, a gritar “já lá vem a carreira”. Ou na praça quando o Ti João Robalinho (Ti Jbão rebalinho), recebia do T´siraiba o Correio que depois distribuía em voz alta.




Recordem:




«Havia naqueles dias dos anos 50 alguns ícones que merecem referência aqui. São profissões, tipos, caracteres, pessoas especiais que, pela sua função ou indispensabilidade, ficaram no nosso imaginário para sempre.

A camioneta da carreira (autocarro diário) era um deles. Um dos principais.



Era um instituto. Duas vezes: às nove e às seis. Havia quem, àquela hora, não fizesse mais nada: ia para o Terreiro (Largo) de São Francisco esperar pela camioneta da carreira. Só para cheirar o que lá ia, quem lá ia.

Só por falta de ocupação e necessidade de manter o contacto com o «resto do mundo», digo eu hoje: o mundo terminava onde terminava o circuito da carreira: Belmonte para um lado, Ozendo / Sabugal para o outro.

Mas acontecia com os mais pequenos outro fenómeno que envolve também a camioneta da carreira: apanhávamos boleia, pendurando-nos lá atrás e indo uns minutos pendurados, com os pés mais ou menos a arrastar pelo chão. Aliás, não era só com a carreira que apanhávamos boleia. Fazíamos isso também com a camioneta do peixe e um ou outro caso de camionistas que por ali paravam.

A técnica era muito simples: do Largo de São Francisco, onde toda a gente parava e, por maioria de razão a camioneta da carreira, até à curva lá em baixo, os motoristas aceleravam pouco porque tinham de fazer aquela curva fechada. Era então boa ocasião para «apanhar a boleia»: cada um pendurava-se cá atrás, onde podia, mas com uma regra sagrada: tinha de ir escondido do motorista. Se não, eles paravam e vinham cá a trás escorraçar o pessoal – que, ala, que se faz tarde, desaparecia em menos de um fósforo…



Mas nem sempre os motoristas abrandavam – às vezes, tenho a certeza, por malandrice também. Aí, toca a saltar. Por vezes, já em situação de perigo. E então lá ia um joelhito abaixo, uma esfarrapadela numa perna, um esmurraço num pé… Era uma vertigem pura, nessas alturas.

Impossível deixar de referir aqui quem era o motorista de sempre da camioneta da carreira: durante anos e anos. Nem sequer se admitia que pudesse haver outro. E se algum dia ia outro, já nada parecia igual. Era o ti’ Saraiva. Já era velhote (ou eu pensava que era. Naquelas idades, temos uma estranha noção de velhice. E, naqueles tempos, as pessoas tinham ou parecia-nos que tinham um estranho ar de velhice precoce). Mas sempre simpático para com toda a gente: era para todos o ti’ Saraiva. » José Carlos



Esta passagem que descreve com delícia, o que todos testemunhávamos, foi escrita por um utente de qualquer outra povoação por onde passava a «carreira». O mundo naquela altura não era mais do que a nossa aldeia e o que nela perpassava. Não havia senão as novidades trazidas pelos forasteiros.



















































8-O OZENDO O BENFICA E O FUTSAL (FUTEBOL DE SALÃO)


Hoje, Domingo, 25 de Abril de 2010 que o BENFICA se sagrou pela primeira vez campeão Europeu de Futsal, vem à memória e resolvemos aqui, justificar e enaltecer o papel que a nossa aldeia teve no desenvolvimento da modalidade.



No mínimo, o Ozendo tem uma página escrita na Pré-História senão na Historia do Futsal no nosso País. Em 1986 ano em que o Benfica, ou qualquer outro clube estavam longe de criar uma equipa de Futsal, já outros, ainda sem competições oficiais, tentam justificar a sua importância no desenvolvimento da modalidade.

Ora, já dez anos antes, no longínquo ano 1976, os então jovens do Ozendo começam a prática do ainda incipiente futebol de salão – ou seria futebol de cinco (?) – pela mão dos estudantes da residência Universitária Ribeiro Santos que à falta de praticantes nos convidavam para jogar no Parque desportivo do 1º de Maio em Lisboa. Estes treinos que fazíamos regulamente, quando em Portugal ainda mal se sabia e não se distinguia o futebol de salão do futebol de cinco, deram os seu frutos.

No ano seguinte em 1977 a Casa do Concelho do Sabugal incentivada também por nós, começou por organizar um dos mais prestigiados até então, senão o mais prestigiado, torneio de futebol de salão (Futebol de cinco) no Campo do Cruzeiro na Ajuda em Lisboa, onde o Ozendo, se inscreveu vindo a ser campeão nesse e noutros torneios que se seguiram. De notar que nesse ano, também “transportamos” a modalidade para o Sabugal onde nesse verão viemos a ganhar um torneio, ele sim, muito participado.



A nossa equipa nessa altura ganhou uma tal auréola de campeões que já ecoava pela cidade de Lisboa, mais nos meios universitários. Eram frequentes os convites que recebíamos para jogar com as mais diversas equipas, nem sempre infelizmente, podendo corresponder-lhes. Era visível que os jovens se sentiam motivados cada vez mais para prática deste desporto…


Estava lançada a semente do Futsal, que só começaria a ter implantação em meados da década de oitenta quando o Torneio da casa do Concelho de Sabugal já era uma das mais conceituadas e antigas organizações da modalidade em todo o país.


As referências cronológicas do Sr. Eduardo Pinto, Ex-Presidente da Federação Portuguesa de Futsal e ex-Vice presidente do Coimbrões são bem elucidativas, verdadeiro testemunho de como o Ozendo foi um dos primeiros campeões de torneios devidamente organizados e com projecção, ainda em 1977. Diz o Sr. Eduardo Pinto:



«Em 1986, sobretudo no verão, realizaram-se grandes torneios de futebol de salão, nomeadamente três deles atingiam uma enorme expressão, quer em termos de praticantes quer em termos de público, falo dos Torneios do F.C. Gaia, Infantes Sagres e Académico.


Continuando a falar do 1º dia do Futsal em Portugal, registe-se o facto de a escritura de fundação da Associação de Futebol de Salão do Porto, realizada no dia 25 de Fevereiro de 1986.



Chegamos então à data mítica de 1990, data da realização do II Campeonato da Europa de Futebol de Salão.

Após semanas de negociações realiza-se uma Assembleia-geral da Federação para atribuir a organização do Europeu. Com esta candidatura forte foi decidido realizar no Porto o Europeu, que decorreu com enorme brilhantismo». (adaptado)



Como se vê são muito posteriores, os torneios de bairro considerados importantes em relação aos organizados pela Casa do Concelho do Sabugal. Os torneios Nacionais e Internacionais virão muito depois.



























9-È melhor assim



O Ozendo, depois de em tempos idos, desde a pré- história até ao florescimento do Cristianismo Séc. IV d.c, ter sido uma zona estratégica - entenda-se a meio caminho entre o Sabugal e o Sabugal Velho - pode hoje voltar assumir esse papel ainda com mais pujança. Recorde-se que ainda na segunda metade do século XX era uma encruzilhada de caminhantes e romeiros. Passavam por ali a pé ou a cavalo os que iam da zona da raia para os mercados do Sabugal e Vila do Touro ou vice-versa, dos que dos lados do Sabugal iam mercadejar para o Soito ou Alfaiates. Passavam também por ali aqueles que em romaria se dirigiam às festas religiosas Santo Antão (Santantão), Sr.ª da Póvoa, Sr.ª da Ajuda, mas sobretudo à Santa Eufêmea.



Não é difícil compreender as facilidades de sobrevivência neste cantinho que é o Ozendo. A natureza brindou-nos, não para enriquecer, mas antes, com as condições ideais a essa mesma sobrevivência. Temos um bom clima, temos uma abundância de água de fácil acesso, há terrenos desde os mais férteis a outros que nem tanto, temos bons prados, muito mato e lenha indispensáveis noutros tempos para a confecção de alimentos e não estamos sujeitos a cataclismos como derrocadas, inundações, ou incêndios devastadores.



Mas o que nos distingue em absoluto, de outras terras com estas condições naturais, e que ainda poucos se aperceberam, são dois factores: primeiro, é o facto de estarmos, não obstante como já dissemos atrás, da abundância de água, livres de inundações; segundo, não menos importante, mas deveras curioso é o de estarmos rodeados por uma cintura de riachos e ribeiros que irrigam os lameiros os quais protegem a aldeia a toda a volta, num ângulo de 360º de queimadas e incêndios, tornando-a numa espécie de ilha com rebordos verdejantes.



Porque as condições de saúde, higiene e salubridade são indispensáveis a uma boa qualidade de vida e evitam epidemias que outrora tanto assolaram esta aldeia, não apenas ao longo dos tempos mas mais recentemente, já em plena década de setenta do passado século, quando em menos de um mês, estranhamente, faleciam cinco vizinhos praticamente da mesma rua sem as pessoas se questionarem porquê.



Assim sendo e dado o que atrás foi dito, para que esta terra se torne hoje em dia, num verdadeiro Éden, só falta que o destino se cumpra e finalmente seja dotada de água de qualidade ao domicílio, uma eficaz recolha de lixo e saneamento. Assim, o concurso de adjudicação já lançado da rede de saneamento e águas tenha provimento e não fique deserto... Aí sim, depois da obra feita, se houver paraísos na terra, este será um deles.









































































10-A vida no campo





Ele era um apaixonado incondicional por tudo o que lhe fizesse lembrar a mãe natureza. Um amante romanticamente manietado pelo seu assédio, tolhendo-lhe em parte a liberdade de se movimentar noutro mundo que não fosse aquele. Não conseguia nem ele nem ninguém que o conhecia melhor, explicar tão doentia paixão, a qual roçava por vezes a raia da esquizofrenia, da psicopatia e da paranóia. O pai já tinha insinuado uma explicação para tal, sobretudo quando às vezes não compreendia o seu comportamento. Ele, por seu lado, já tinha tentado adivinhar-lhe os pensamentos:



«Nos anos que se seguiram à guerra, embora o Germano tal como todos os da sua geração não tivessem sofrido os seus horrores, foram anos extremamente duros, as aldeias de norte a sul estavam a abarrotar de almas. Fora aliás o período desde sempre que mais gente viu por estas paragens. Nada que se compare com a deprimente desertificação que teima em ser cíclica. Ele bem se lembrava, mas queria esquecer, os dias em que com o carrego às costa tinha que atravessar para o lado de lá da fronteira com o minério, percorrendo dias e noites a fio montes e vales para depositar uns míseros mas pesadíssimos quarenta quilos, ou às vezes quiçá, como certo dia lhe aconteceu, quando tentava ludibriar a Guarda Fiscal, ser por ela surpreendido anichado trás de uma moita e só ter acordado completamente aturdido e despojado do seu pesado fardo na exígua e nauseabunda cela do posto.

Tempos difíceis aqueles. De tal modo que arranjar um palmo de terra por muito má que fosse, para plantar umas batatas ou semear um centeio que enchesse as enormes e velhinhas arcas feitas de castanho a fim de fazer face aos Invernos que eram longos e rigorosos para alimentar os filhos que nasciam às catervadas era o cabo dos trabalhos.

Muito a custo conseguiu a troco duma avultada peia, umas glebas lá bem longe, para o sítio da Morganheira, quase nos confins do mundo.

Essa, como aliás todas as manhãs, mas sobretudo nos dias em que tinham que se dirigir a esse recanto, levantaram-se ainda mal a noite tinha posta a sossego toda a aldeia da azáfama do dia anterior. Enquanto o Germano ia à adega buscar o jugo, as sogas e o tamoeiro para junguir os animais, a mulher, que entretanto se levantara um tudo nada mais cedo para dar de almoçar ao gado, soltava da manjedoura a Cereja e a Castanha. Eram duas lindas vacas castanhas, de raça Jarmelenha, esta mais escura, aquela mais para o amarelo alaranjado, possantes, mansas e meigas como a terra. Tinha-se-lhes criado tal afeição como era habitual acontecer com todos os animais lá em casa, que já pareciam fazer parte da família.

Após terem achavelhado a cabeçalha do carro ao jugo, seguiram marcha que a jornada era longa.

A Castanha e a Cereja muito bem ensinadas, seguiam langorosamente, o caminho que já sabiam de cor e salteado. O amanhecer ainda tardava. Aqui e ali a coberto da noite, vislumbrava-se um vulto que de sachola às costas saia de casa e se dirigia por certo a algum lameiro para virar o tornadoiro da água. Debaixo daquele triato de giestas furtivamente sai o José António Garrocho convencido que era o único madrugador, mas logo atrás, qual detective no rasto do criminoso, seguia-lhe as passadas o seu vizinho Treque-Treque que chegado que foi à Relva da Fonte, roubava do tornadoiro da regadeira, com duas ou três sachadelas por demais certeiras o precioso líquido, que se haveria de espreguiçar até chegar ao seu verdejante e viçoso prado, o qual lá mais para o S. Pedro seria agadanhado à força dos seus braços. Pequeno pecúlio aquele para tanto trabalho!...

Logo que deixaram para trás o casario, o Germano, fincando o aguilhão e agarrando-se a um estadulho traseiro, que sobressaia da sebe, num upa lesto, subiu para cima do chedeiro do carro, onde a sua mulher, a Maria Cláudia já o esperava, acomodada, tanto quanto é possível fazê-lo, em cima de um taleigo de adubo.

- Vai, vaca vai!...Hei!... Vamos que se faz tarde - clamava o Germano espicaçando o andamento dos ruminantes que pareciam mais espevitados para remoer o almoço que para andar.

- Ai que linda !... Ai que linda!... Ai a marota que já fez dano aí nalguma capoeira, lá vai ela - gritava a mulher num misto de medo e admiração ao mesmo tempo que ficava com pele de galinha e um calafrio lhe percorria a espinha, ao vislumbrar no raio de visão delimitado pelas sebes, uma raposa a fugir com o seu frondoso e luzidio rabo alçado como que a desafiar quem quisesse correr apanhá-la.

- Deixa-a ir. Deixa-a ir... Também precisa de comer - dizia o Germano conformado enquanto lá no íntimo fazia jus à finúria da manhosa tetravó: “Ah... estão verdes nem os cães as podem tragar”.







Aproveitando o abrigo das sebes do carro, feitas de ramos de freixo engenhosamente encanastrados, a Maria Cláudia não se fez rogada, atirou-se literalmente, ao marido, como uma loba esfaimada. Não que lhe quisesse fazer algum dano, que ela não era mulher dada a essas coisas. Depois do movimento brusco com que o consegui enlaçar, vieram as mais ternas meiguices. O Germano que na noite anterior tinha estado na tasca do Cávem até fechar, e de onde já saíra meio alegrote, não estava muito pelos ajustes. Contudo, não queria ficar mal visto. Num ápice, fizeram do taleigo de semente, que também ele haveria de germinar, um cómodo travesseiro. E ali mesmo embalados pelos solavancos das rodas do carro repetidos e alternados sem nenhuma cadência ao ritmo dos pedregulhos e barrancos que iam aparecendo, se entregaram, tendo como única testemunha, pelo menos assim o esperavam, essa feiticeira, sempre ela,... que indiscreta se atrevia, a espreitar lá do alto, por entre as sebes, mais radiosa que nunca.

Depois de se embrenharem alternadamente, em carvalheiras, giestais, vinhedos, milharais batatais sempre e sempre naquele trepidar constante, por vezes incómodo até, das rodas que pareciam percorrer pela primeira vez trilhos que afinal eram milenares nas suas marcas, a Cereja e a Castanha, definitivamente especaram, e nem mais um passo... Porém, os seus muito estimados donos tarde se aperceberam que tinham chegado ao destino.



-Upa!.. que a vida não é só folguedo - relembrava o Germano entre dentes - é preciso trabalhar que se faz tarde.

- És tão bruto - tamudeava também entre dentes a Maria Cláudia em tom de brincadeira, com laivos de desapontamento e insatisfação, mas de alguma forma conformada. Conformada sim mas satisfeita não, que ela não era mulher para ficar já satisfeita - espera aí que já vamos que o trabalho não se azeda. Olha que tudo tem que ser feito com tempo - disse ainda.

Pois... pois, também a sementeira, se vem para aí uma borrasca, depois sabe-se lá quando poderá ser feita - prosseguia o Germano.

- Bom então vamos lá assentiu a - Maria Cláudia, enquanto ajeitava a blusa e a saia, parecendo querer, como que passá-la a ferro.

- Olha dá-me aí as molhelhas - solicitava o Germano, enquanto pegava com o jugo da lavra, cada mão em sua cabeçada e se dirigia para frente dos animais. Poisou o jugo no chão a jeito e apressou-se em as soltar do outro jugo mais largo, mais apropriado para por as vacas ao carro. Começou por tirar a cabeçalha do tamoeiro e a um gesto imperceptível à vista humana, a Castanha e a Cereja avançaram ligeiramente para que suavemente a pudesse baixar . Em seguida, desenrolou as sogas dos cornos uma após outra, e tirou-as para o outro jugo repetindo ao invés todo o procedimento. Posto isto, junguiu o arado, pegou na aguilhada e dirigiu-se à rabiça. A um pequeno toque nas garupas de cada um dos animais, iniciou-se a lenta, monótona caminhada, necessária à lavra da sementeira.

Chegada a hora de maior calor, é tempo de dar de comer ao gado, e de merendar pois então... À sombra de um mostajeiro desfaz-se o cabaz bem provido de queijo, chouriço, presunto, azeitonas, uns pimentos curtidos, pão centeio e sobretudo uma cabaça, com uma bela pinga, tudo de fabrico próprio do melhor que há. Depois de um excelente repasto, exclusivo daqueles dias árduos de trabalho, nada mais delicioso e revigorante que saborear a brisa ainda fresca, em uma qualquer sombra, espojado sobre um qualquer tufo de erva.

Refastelado, com uma pedra a servir de encosto, o Germano, observa como a Maria Cláudia num andar sensual e bamboleante, se embrenhava numa moita de densos carvalhos. Logo ali, lhe vieram ao pensamento pervertidos desejos. Muito descontraidamente, levantou-se. Pausadamente, limpou e ajeitou o cós das calças e a passos comedidos seguiu as pisadas da mulher. Sorrateiramente, quieto que nem um rato, por detrás de uma frondosa giesta, sem que a mulher se apercebesse, observava-lhe os gestos.

Com todos os cuidados de higiene, sim porque quanto a isso ainda haveria de vir a primeira, segurando a saia com a mão esquerda, com a outra num gesto suave e sensual limpava das partes mais íntimas o abundante corrimento próprio, aliás, dos ciclos de fertilidade de qualquer mulher. Ao ver tal, o Germano sentiu-se invadido de alto a baixo por um calafrio que lhe percorreu a medula, consumido pelo desejo, não se conteve. Forçando um pigarreio, indiciador da sua presença, não fosse a mulher assustar-se, aproximou-se como quem não quer a coisa, ardendo em libidinosos desejos. De repente, num olhar cruzado e fulminante, penetraram cada um no mais íntimo ser do outro. A Maria Cláudia sentiu-se de certa maneira perturbada e incapaz de esboçar uma qualquer reacção que fosse. Sem articularem palavra enrolaram-se arfando de desejo. Ali mesmo trás de um penhasco, tendo por testemunhas ora uns ora outros, num rodopiar de passarada - rouxinóis, pintassilgos, pardais, melros, rolas, poupas, pegas, cotovias e até irrequietas carricinhas - se entregaram.

A entrega era sempre total, e dava-lhes de cada vez um mesmo intenso e renovado prazer sem fim. Ambos tinham a singular sensação ser sempre diferente, uma melhor que a outra. Agora pareceu ainda, ser mais diferente e intensamente saboreado tal momento porque ambos tinham ficado com o secreto pressentimento que algo mais que aquele acto singular, estava acontecer».





O José Augusto adivinhava, ou algo lhe dizia, que tinha sido concebido, fruto de um amor bucólico e devotado assim. Ele que tantas vezes dormira as sonecas que outros dormem em berços de ouro, à sombra de um carvalho, ou outra qualquer sombra, ou até à sombra daquela nogueira portuguesa, agora gigantesca, que outrora o seu bisavô Ti Zé Ti João tinha feito nascer , num canteiro à porta de casa, e que transplantara para o prédio da regada ainda apenas com escassos centímetros de altura. Eram estas, as razões, por certo que o levavam a pensar porque gostava tão apaixonadamente de viver ao ar livre em contacto com a natureza, observar, como só ele sabia, com minuciosa atenção toda aquela azáfama da passarada que ele conhecia tão bem - a dirigirem-se para os ninhos com os bicos azougados de palhiço ou de bicho para os filhotes, as plantas que ele quase conseguia ver crescer e que tão bem sabia distinguir logo que começassem a germinar - mas sobretudo dava-lhe particular prazer respirar a plenos pulmões aquele ar puro que agora cada vez mais rareia. Descobrira ao respirar esse ar puro que conseguia libertar-se plenamente. Descobrira que ao respirar esse ar o seu sangue ficava mais oxigenado e mais liquefeito, lhe corria melhor nas veias revigorando todos os recantos do seu corpo. Por isso compreende agora que todas as maleitas de que sofre na cidade, lhe desaparecem «milagrosamente» ali quando respira o ar puro do campo.



























































11-Condenação injusta



- José Augusto da Silva Ferreira?...

- Presente.

- Atenção às testemunhas de acusação. Artur Santos Oliveira?...

-Presente.

- A testemunha José Manuel Chilo?...

- Presente.

- Ismael Braz Antono?...

- Com a permissão de Vossa Excelência, deixe que me apresente. Estou aqui desde as oito horas da manhã e ninguém nos dá uma satisfação - retorquia com um misto de azedume e cortesia. Enquanto o oficial de diligências ameaçava:

- Cale-se, ou prendo-o já.

- Pois faça como vossemecê o quiser - ripostava o Ismael baixando propositadamente o grau de tratamento de cortesia. Agora um tanto enfadado, o senhor Catita prosseguia a chamada do imenso rol de testemunhas, vinte e duas ao todo:

- Façam favor de aguardar um instante que eu já os chamo - rematava ele por fim num tom altivo, virando de imediato as costas e fechando atrás de si a porta que dá acesso à secretaria.

Cá fora as pessoas que se tinham mostrado, de uma forma geral, educadas e solícitas , agora que o viam pelas costas, começavam a remoer invectivas em surdina.

- Isto não pode ser, está esta merda do julgamento marcado para as nove horas, desde as seis da manhã que saí de casa e até agora onze e um quarto, e nada. Os animais, lá na loja, a bater com os cornos na manjedoura sem terem quem lhes dê de comer - continuava o Ismael Antono a resmungar para quem o quisesse ouvir.

- E os três adiamentos que já se fizeram - incendiava também o Anacleto - é um gasto, um dinheirão só em bilhetes de viagens, carreira para cá, carreira para lá, só porque dói a barriga ao senhor doutor juiz, ou porque o advogado comeu demais ao almoço, ou porque dá a soltura a qualquer um, qualquer caganeirice serve para nos fazer andar aqui em bolandas. Olha que outro dia tive que agarrar um carro de aluguer e só por uns par de quilómetros “deixa cá ver dezoito notas”. Isto assim não pode ser.

Parecia que se tinha lançado ali a semente de uma qualquer revolução, tal era conspiração. Mas não ...

O senhor Catita voltava a aparecer à porta e de novo se fazia um silêncio sepulcral. Ninguém falou, ninguém disse nada de mal anteriormente - era o que todos queriam dar a entender - e quem disser o contrário, mente!...

- Façam favor de entrar para a sala das audiências - ordenava, enquanto afagava com a mão esquerda a borda da capa preta que trazia pelos ombros e dirigia o José Augusto ao banco dos réus - as testemunhas vão para além.

As testemunhas, essas, ficavam no corredor em pé, à molhada horas e horas a fio. Havia até quem já pretendesse fazer a comparação entre esta situação caricata de desarrumo, com a do funcionamento da justiça. Mas talvez essa semelhança não passasse de mera coincidência. Quem Sabe?... A sala que lhes era destinada, estava amontoada de processos atrasados que não andavam, e de outros tarecos, os mais variados, estranhos objectos de crime, aprendidos: pistolas, caçadeiras, sachos, foices, gadanhas, picaretas martelos, facas, gazuas, pés de cabra, chaves de automóveis electrodomésticos variados e até um reles e repelente preservativo que a ofendida diz ter retirado do meio da trampa da sanita, objecto de tentativa de violação de um estudante na pessoa de uma sua criada de servir...





«- Então conte lá - insistia o investigador, que no caso substituía o Delegado do Ministério Público.

- Bem então eu entrei no quarto, e como acontecia quase sempre, o menino ainda estava na cama. Fui à janela e arredei as cortinas, depois senhor doutor...

- Eu não sou doutor- interrompia o Catita entre dentes num misto de prosápia e vaidade - então e já agora que idade tinha o menino?

- Ai senhor doutor - insistia - era ainda uma criança, eu nem sei como lhe deu para aquilo, foi o Damónho que se lhe meteu no corpo, veja lá... apenas com vinte e um anos!...

- Então e depois conte lá?...

- Bom ele insistia em não se levantar, como era costume, então eu tirei-lhe a roupa da cama, mas ele voltava a tapar-se. Por fim depois de muito insistir lá se espreguiçou sentou-se na cama à espera que eu saísse, mas está claro que tinha que fazer o meu trabalho, eu nem olhava para ele, limitava-me limpar o pó. Não acha que devia? - perguntava esperando o assentimento.

- Então e naquelas circunstâncias não acha que devia mesmo sair?

- Ó senhor doutor, olhe que eu sou uma pessoa de bem,... sou uma pessoa séria. Eu nem olhava para ele.

- Mas olhava ele para si - insinuava o senhor catita num ar, agora zombeteiro.

- Pois olhe que ele não tinha nada que olhar que eu estava em muito bons preparos. Só fazia o meu trabalho, apesar de estar muito calor. Depois ele não percebeu que eu só estava ali para limpar o pó agarro-me para me pôr fora do quarto eu ainda lhe disse que se me pusesse fora chamava a sua mãe, mas ele não quis saber. Queria mesmo correr comigo. Mas eu como não sou de desistir...

- De desistir?... - questionava cada vez mais incrédulo o interlocutor.

-Pois... pois - anuía a jovem na sua ingenuidade, prosseguindo - ele agarra-se a mim eu agarrei-me a ele para que me largasse e me deixasse em paz. Mas entretanto os atavios que trazia vestidos desapertaram-se... Eu ainda tentei esconder. Compreende não compreende?... Depois tudo aconteceu. Eu não tive culpa nenhuma, só queria fazer o meu trabalho.

- Estou a compreender - terminava o oficial de diligências enquanto se levantava e abanava a cabeça.»



...Ou ainda aquela outra pistola que aparentemente inofensiva, qual brinquedo de carnaval, teria sido utilizada para perpetrar o crime mais que perfeito.



«O meliante num ajuste de contas terá preparado bem a coisa, apenas com muita imaginação e pouco trabalho, terá trocado a pistola de uma criança que garbosamente exibia no mercado fazendo incessantemente que disparava contra toda a gente, por aquela verdadeira sem que ninguém no meio da confusão se apercebesse, nem mesmo a própria. Depois foi só esperar pelo momento asado. Quando a criança lhe apontou a pistola, em tom de aparente brincadeira, tirou-lha da mão e acto repentino virou-se para o seu antagonista que só aparentemente por acaso passava ali no momento, e atingiu-o mortalmente na presença de dezenas de testemunhas que jurariam a pés juntos ter-se tratado de um mero acidente.»



Por uma quase secreta porta lateral entra o juiz, na sua comprida beca que estranhamente, parecia arrastar-se sozinha, de tal forma lhe tapava também os pés. Toda a gente se levanta. O juiz num compasso de espera premeditado e devidamente teatralizado, antes de se sentar, bate com o martelo ao mesmo tempo que proclama aberta audiência, ordenando:

- Façam favor de se sentar - num tom grave prossegui - o senhor José Augusto está aqui como sabe, por ser acusado de crime de fogo posto, pelo que passo a ler a acusação.



« - Em processo comum com intervenção de tribunal singular, o Ministério Público acusa:



José Augusto da Silva Ferreira, solteiro, menor, sem ocupação conhecida, nascido a 29 de fevereiro de 1952, filho de Germano Segura Ferreira e de Maria Cláudia Silva, agricultores, natural de Ozendo e a residir actualmente na rua Padre Damião nº 2 Guarda.



Porquanto:



No dia 19 de Agosto de 1966, pelas 13.30 horas deflagrou um incêndio no local de S. Gens limite de Ozendo em confrontação com o limite de Quadrazais deste concelho e comarca, o qual foi extinto pelas 22 horas do dia seguinte, tendo ardido, uma área de duzentos hectares de terra composta de mato, pinheiro, castanheiros, videiras, macieiras, pereiras e outras árvores de fruta.

Arderam ainda dois palheiros de feno e palha, bem como tubagens, motores de rega, um tractor e outras alfaias agrícolas.

Os danos causados pelo referido sinistro foram avaliados em 750.000$00, tendo o mesmo sido combatido por bombeiros sempre com a inestimável colaboração dos populares.

O referido incêndio foi causado por uma conduta negligente do arguido, que aproveitando o facto de as pessoas estarem na missa da festa de S. Gens, terá lançado um foguete.

Com efeito o referido engenho chegou ao chão ainda a arder, tendo o arguido mostrado indiferença por esse facto, o que viria a causar o referido incêndio.

O arguido agiu livre e conscientemente, não actuando com o cuidado devido e exigível já que o forte vento que se fazia sentir na altura, aliado à inexperiência do arguido, obstava a que os foguetes subissem o suficiente, caindo no solo ainda a arder.

Sabia também que perto do local onde lançou o foguete existia muito mato, pasto e restolho seco e que poderia, assim provocar um incêndio, pondo em causa bens patrimoniais de grande valor. Tal conhecimento não obstou, todavia, a que lançasse o foguete, confiando em que tal resultado não se verificaria.

Sabia o arguido que tal conduta lhe era proibida e punida pela lei penal.

Cometeu, pelo exposto como autor material, um crime de incêndio negligente previsto e punido pelos nº 3 do artigo 235º do Código Penal e nº1 do artigo 2º da lei 14/50 de 19 de Julho.»





- Posto isto, o arguido tem alguma coisa a dizer em sua defesa - prossegui o juiz.

- De momento nada , Senhor Doutor Juiz - ripostou o José Augusto.

- Então que entre a primeira testemunha - ordenou o Juiz.

Passados escassos segundos aparece a primeira testemunha acompanhada do oficial de diligências.

- Como se chama? - Questionou o juiz.

- Ramiro da Costa Vaz residente em Torre Sabugal - disse.

-Jura por Deus e pela Santa Madre Igreja dizer a verdade, só a verdade e toda a verdade? - prosseguia o juiz.

- Juro.

-Então senhor Ramiro conte lá ao tribunal o que sabe - volveu o juiz.

Bem senhor doutor juiz eu praticamente não vi nada, a capela estava cheia eu estava a assistir ao Santo Sacrifício da Missa cá fora, já se vê, porque não se cabia lá dentro, e quase não vi nada - repetia - só vi este rapaz com um foguete na mão a apuchar-lhe o fogo, entrementes, a uns metros dali viu-se um fogacho. Mas eu praticamente não vi nada. E em menos de nada o fogo já era difícil de apagar. Mas o foguete não apucharia assim o fogo... julgo eu. Embora, também, valha verdade, não houvesse por ali mais ninguém. Mas eu não vi nada.

Depois de muita hesitação e algumas contradições ouvidas da boca do Ramiro, que insistia em dar uma no cravo outra na ferradura, o Juiz não se conteve:

- Ó homem afinal viu ou não viu? - inquiriu em tom intimidatório e irritadiço.

- Ver não vi... ainda tentei ir apagar o fogo mas ... - respondeu a gaguejar.

O juiz já nem o quis deixar acabar de falar.

- A testemunha seguinte - interrompeu.

Procedeu-se ao mesmo ritual para as testemunhas: -como se chama?... jura por Deus..., seguindo-se um chorrilho de mentiras, meias verdades e verdades poucas à mistura com muitas contradições que foram fatais para o José Augusto.

A justiça foi-lhe dura. “Dura lex sed lex”. Agora pensava compreender o verdadeiro sentido da máxima latina ostentada cá fora pela fria e inexpressiva estátua da justiça que se encontra na frente lateral do Tribunal.

De imediato foi conduzido aos calabouços do tribunal, dando entrada no dia seguinte, pela manhã na casa de correcção, o Jovem Gaiato. Após um comportamento exemplar, devotado que se entregava de alma e coração às tarefas de que era incumbido, depressa porém, acabou por sair.

























































12-Columbófilo





Eram lindos os pombos correios. Mais lindos era difícil de imaginar. Tinham tanto de belos como de raros. Que o dissesse o Torres, um criador exímio que coleccionava campeões e que a dada altura lhe propôs uma troca. Dava-lhe dois ou três casais de filhos de campeões, por uma postura de ovos, para os quais se encarregaria ainda, de arranjar as condições ideais de incubação.

Foi um achado. Comprara-os por mero acaso, numa daquelas casas de animais que ainda conseguem resistir a todas as pressões das ligas e associações protectoras de animais, em pleno coração do Porto, na Avenida Dom Afonso Henriques. Numa daquelas tardes em que se passeava descontraidamente pela baixa portuense, entrara naquela loja para se refazer de um susto e nada mais. É que momentos antes, inesperadamente, fora abordado por um daqueles vendedores, de aspecto pouco recomendado, que proliferam nas ruas mais escuras da cidade. Meio aturdido - o meliante ter-lhe-á sem ele se aperceber, dirigido algum spray - vê-se no vão de uma escada numa penumbra total em frente de uma pistola e as respectivas balas.

- Quanto é que me dás por esta arma? É da melhor qualidade. Já aqui tens as balas e tudo. Dás-me oito contos e o relógio!... - insiste num cada vez mais pronunciado sotaque aciganado, vendo-o incapaz de esboçar qualquer reacção - ... Anda que vais bem servido. Mata um elefante a cinquenta metros. Com esta pistola foi assaltado o Banco da Figueira da Foz. Não há melhor.

- Mas!... Mas...

- Hein!... dás-me quatro contos - persiste em tom cantarolante. O José Augusto estava estarrecido. Incapaz de reagir deu consigo a pensar “ se não lha compro já a vira contra mim e é o fim.

- Mas eu... - nem o deixou continuar:

- Dá cá oitocentos escudos e é tua. O José Augusto sentia faltarem-lhe as forças e a clareza de raciocínio. Sentia-se, neste caso, num vão de escada sem saída. E o seu interlocutor, cada vez mais se lhe insinuava encostando-o à parede. Por fim com a voz embargada, já derrotado, ainda teve o ensejo de balbuciar uma pequena mentira, numa ténue e vã esperança, ao mesmo tempo, de não ser ouvido:

- Mas... Mas eu estou teso... não tenho nem um tostão - Palavras mágicas. Tal como, mal se tinha apercebido de ali ter sido encurralado, também mal se apercebeu que ficara livre, e só, a pensar com os seu botões o mal que lhe poderia ter acontecido... Mas o ciganito nem foi mau. Ao contrário do que muitos querem pintar os da sua raça.

... Assim se viu, quase sem se dar por isso, naquela loja, a apreçar aquele casalinho de alvos pombos. Alvos sim!... mais alvos que a própria neve. Nem uma sombra de outra cor. Apenas sobressaiam, ligeiramente alaranjadas, as patas e o bico, este com as dilatadas narinas características próprias dos pombos de grande fôlego, como eram estes correios. Na pata direita, uma anilha vermelha com o número de identificação em conformidade com o bilhete de identidade, também vermelho, diziam da linhagem dos bichos.

Meio perdido, foi desembocar na Praça da Liberdade. Após contornar a Igreja dos Congregados subiu a Avenida dos Aliados e entrou na modesta pensão onde ficara alojado. Esgueirou-se que nem intruso, não fosse o diabo tecê-las e ser impedido de entrar com o estranho pacote, que muito a custo, aliás, encaixava debaixo do braço.







Há!... como ele se deliciava. Saia de manhã de casa. Andava por vezes horas e horas, quilómetros e quilómetros a pé. Afastava-se tanto quanto podia. Às vezes chegava, quase sem dar por isso a embrenhar-se fronteira dentro, por terras de Aragão e Castela. Depois abria a gaiola e era vê-los, sôfregos de liberdade, voar, voar até se perderem de vista.

Da primeira vez receou perdê-los. Pensou que não fossem capazes de regressar. Esse pensamento trouxe-lhe no regresso a casa, momentos de ansiedade, de receio, de um mal estar que tornaram esse passeio num autêntico pesadelo. Era uma manhã de primavera. Embora o sol brilhasse com todo o seu esplendor, uma brisa fina, tornava o ar fresco, quase frio, difícil de suportar. Ainda por cima tinha saído de casa completamente desprevenido. Já a caminhada era longa e entretanto encetara o caminho de regresso, quando desalentado e abatido pelo peso do desconsolo, sentiu necessidade de descansar. Sentou-se na borda de um barroco, meteu a mão no bolso à procura de algo que sabia não trazer consigo. Não era seu hábito fumar, por isso não trazia nem cigarros nem lume. Tinha vontade acender uma fogueira. Mas como?... Mexeu e remexeu nos bolsos, na vã expectativa por um lado de aquecer as mãos por outro de encontrar algo que o reconfortasse. Mas nada... Então levantou-se, deu uma volta por ali e não tardou a encontrar uma garrafa de pirolito que por ali tinha ficado esquecida, quiçá com petróleo para algum motor de rega ou desperdício de um qualquer piquenique. Com um golpe seco numa aresta afiada do barroco de granito, que lhe servia de assento, partiu-a. Atabalhoadamente ajeitou um montinho de galhos bem ressequidos, mais acolá, ripa uma mão cheia de fetos também bem secos, agachou-se para melhor se abrigar do vento. Olhou para o sol e com a ponta dos dedos na parte lateral a segurar o fundo da garrafa dirige o feixe de raios luminosos concentrados, pela lupa engenhosamente improvisada, para o molho de fetos. Depois de uma teimosa luta com o vento lá conseguiu que os fetos começassem a estrelejar. O mais difícil estava feito. Após o que bastou juntar-lhe uns galhos cada vez mais grossos para que em menos de um fósforo conseguisse uma boa chamarada só comparável às fogueiras de S. João. O braseal aqueceu-lhe o corpo e animou-lhe o espírito. Lembrava-se como desde muito cedo se tornou especialista em usar lentes para brincar com o fogo. Lembra-se como já lá vai o tempo em que arranjar uma lâmpada fundida se tornava um acontecimento, um achado. Lembrava-se como com todo o cuidado lhe tirava o casquilho para não a partir. E como ele sabia fazê-lo!... Com o mesmo primor e artifício, segredo que só ele conhecia, abria um pequeno orifício, enchia-a de água cristalina, colocava-lhe de novo o casquilho e lá estava uma intrigante quão potentíssima lupa, bastava uma ténue réstia de sol para que em dias de frio acendesse uma reconfortante fogueira ou até um cigarro a um qualquer amigo mais velho que se intrigava com o engenho.

Agora com a fogueira acesa, aquecia-se refastelado tanto quanto é possível fazê-lo em cima de um imenso bloco de granito, alisado pelas intempéries que por ele passaram ao longo de centenas de milhões de anos, enquanto absorto observava o imenso e belo panorama que se espraiava em todas as direcções a perder de vista. Dali conseguia, sem exagero, alcançar à vista desarmada, em dias cristalinos mais de metade do solo pátrio, para além da imensa campina espanhola que ficava ao seu alcance. A West-noroeste lá para os lados de Aveiro, conseguia vislumbrar a serra da Arada, um pouco mais a norte a serra de Montemuro, que no rigor do Inverno tentava messas com a Serra da Estrela no que ao manto de neve diz respeito. Mais para norte ainda, aqui mais perto, a uns bons sessenta quilómetros lá estava a Serra da Marofa sobranceira à antiquíssima, bela e não menos enigmática, Castelo Rodrigo, com cada uma das pedras das suas ruínas a brotar história. Mais para a esquerda lá no longínquo horizonte conseguia-se ainda vislumbrar a alvíssima capela da Senhora da Lapa, encimando a serra que lhe dava o nome. Toda esta banda que se estende particamente do mar até Espanha, é delimitada pela cordilheira de montes que por certo tiveram influência na designação das terras que ficam lá por trás, exactamente... Trás os Montes. Montes mágicos estes quão mágico é o paladar do inigualável vinho do Porto cujas cepas ousam medrar naquelas vertentes íngremes e inóspitas ou quão mágica possa ser a nossa imaginação para deambular sem destino certo, nem objetivos definidos como o teriam feito aqueles que em tempos imemoriais souberam deixar as marcas da sua passagem por estes vales sagrados de clima tão ameno, como é o Vale do Côa. A West-sudoeste a majestosa Serra da Estrala impõe a sua magnanimidade obrigando logo ali, a esbarrar as vistas, fazendo imaginar para lá daquele frequente manto de nevoeiro, e ainda antes de chegar a Coimbra, as Serras do Caramulo e do Buçaco mais ligeiramente a Sul a discreta Serra do Açor com os seus tapetes de alecrim. Ao lado desta, a Serra da Gardunha, não teve a coragem de servir de cortina a toda a festiva Beira Baixa. Monsanto, qual presépio medieval, lá está sempre de atalaia Já perto de Monfortinho e de Espanha. Lá mais ao fundo no plano do horizonte que a vista ainda consegue alcançar, já em pleno Alentejo onde campeia o verde e o gado bovino vislumbram-se as Serras de Marvão e de S. Mamede entre a Gardunha e a Malcata. Esta, aqui tão perto, que se conseguem distinguir, em manchas salteadas, num festival de homenagem ao arco Íris, as flores da giesta, da torga, do alecrim, do rosmaninho, da bela luz, da carqueja, e dos lírios silvestres que crescem aqui e ali aos mouchões. A leste toda a terra de Castela e Lião parecendo uma imensa caldeira fazendo acreditar que em tempos remotos teria servido de leito a um glaciar. A cordilheira da meseta, lá bem longe a rivalizar com a nossa Serra da Estrela dão uma ideia bem real de todo o maciço central ibérico.



Depois de se deixar esquecer, acordou meio enregelado. O lume já se começava a extinguir. O estômago, esse, estava completamente desforrado e a exigir conforto. O mal estar do José Augusto aumentava na proporção da sua fome. Desalentado com as mãos nos bolsos, como quem não quer a coisa e sem se preocupar porque o fazia nem quais as consequências, dá um pontapé num tição, que vai embater num outro barroco uns par de metros à frente, aninhando-se num emaranhado de fetos. Foi como rastilho em pólvora seca. Em menos de um fósforo o fogo alastrou a um denso giestal contíguo, seguindo-se um pinhal e outro e mais outro..., em breve se tornou num inferno. O autor de tal proeza lívido e em pânico ainda fez tudo o que estava ao seu alcance para reparar os estragos, mas ao olhar para as dantescas labaredas que se desfaziam em densas e negras cortinas de fumo nada mais pode fazer que esperar que o pior não acontecesse . Enquanto isso, começavam a vir no seu encalço e em outras direcções, assustados, numa louca e desenfreada correria coelhos, muitos coelhos..., ratos, doninhas, saca rabos, gatos bravos, texugos, uma ou outra raposa, javalis seguidos das suas proles e até um lince dos que já escasseiam lá para as bandas da Serra da Malcata. Aconteceu até, que uma lebre, bem alimentada e luzidia por sinal, no ardor da sua fuga, esbarrou intempestivamente nas suas pernas ficando logo ali. Ágil como era, de cacete na mão muito naturalmente e depois de ver que a mãe cerda, na sua fuga tresloucada, se encontrava já suficientemente distante, deu uma traulitada num jovem javali ainda listado, que meio atordoado também se quedou. Num ápice, meteu ambos dois debaixo do braço e rumou a casa. No entanto como o caminho era longo viu-se e desejou-se para chegar a casa. A lebre como estava morta, atou-a ao pescoço fazendo logo ali uma estola invejavelmente lustrosa, o pequeno javardo, selvagem como era, logo que se recompôs, deu-lhe que fazer. Experimentou mil e uma maneira para acomodar a carga, mas nenhuma delas era melhor que a outra dada a vivacidade do bicho. Quando chegou ao Ribeiro Dindinho no afã de ajeitar a carga, após ter mergulhado para provar daquela água que de Verão é fresca e de Inverno tépida, ainda experimentou os imberbes dentes da “fera” que lhos afincou numa anca com o fito de se libertar. Era indomável...

Por fim, arfando de cansaço da longa caminhada, dirigiu-se ao pombal a certificar-se se os seus “campeões” lá estavam. Que alegria incontida!... ao ver na beira do poleiro arrulhando garbosamente fazendo a corte à maneira de namoro e parecendo querer dizer que ali estava pronto para outra. Enquanto isso, a pomba que ainda não tivera tempo para matar as saudades, baixava a cabeça submissa roçando-a no seu reluzente e garboso peito. Só então o José Augusto, respirou fundo e se deu conta dos troféus que transportara durante largos quilómetros. Dirigiu-se ao alpendre contíguo, improvisou uma exígua cerca e depois de afagar carinhosamente o bacorinho cuidadosamente meteu-o lá dentro, após o que se dirigiu à cozinha onde sua mãe, a Maria Cláudia, se entretinha com as lides da casa:

- Tome lá para o almoço.

- Já estás aí?... - Balbuciava a mãe sem dirigir o olhar para o filho nem prestar sentido às palavras que lhe eram dirigidas - então já viste o fogo que anda lá para os lados da Fieiteira? O teu pai já para lá anda com o tractor. Se não o atalham ainda há para aí uma desgraça. Isto só pode ser obra de algum malandro. Havia era de ele lá ficar que Deus Nosso Senhor o castigasse, o criminoso... o malandro... Havia de arder naquele inferno. Quem é que é tão ruim que faça uma coisa destas? Se fosse eu que o apanhasse empurrava-o para o meio do fogo. Que ruins... que ruins... Valha-me Deus.

- O José Augusto encolheu os ombros e apaziguou os ânimos da mãe:

- Deixe lá,... isso é obra dos madeireiros, querem-no ganhar todo - dizia, poisando no escano a luzidia presa.



























































13-O Armador





O Eusébio, andava numa roda viva, para cá, para lá como se nada lhe pesassem os cento e vinte e cinco quilos e a sua proeminente barriga. Entrou na taberna do Cávem e perguntou aos circunstantes num tom altivo:

- Alguém viu por aqui o Maximino.?

- Não ainda aqui não esteve - responderam em coro.

O Eusébio virou as costas, largou o postigo que no seu movimento de vai e vem com grande estrondo lhe bateu no rabo, e saiu dali a resmungar. Andava muito preocupado, os negócios não iam nada bem. Tinha-se, a bem dizer, exilado voluntariamente, por aqui. Viera da outra banda, lá onde o sol parece reclinar a cabeça numa almofada feita de algodão tisnada de mar e púrpura. Viera primeiro por curiosidade, numa altura em que de quando em vez, despachava no comboio de mercadorias, umas quantas sacas de Foscamónio, de Nitratos do Chile, de açúcar, de arroz, umas caixas de sabão, umas relhas e até café, muito café, tudo a granel. Depois era ele que se metia numa carruagem e vinha orientar a distribuição. Eram duros aqueles tempos. Na gare do Barracão aguardava os carros de bois que chegariam de todo o lado, mesmo de perto da raia de Espanha e que só regressariam a casa dois dias depois carregados, com a junta e os lavradores esgotados e esfaimados. Nesse tempo o negócio teve períodos de prosperidade. A experiência sanguinolenta e macabra daquela que parecia ser apenas uma guerra civil espanhola, fizera os seus estragos. A fome multiplicava-se e era mil vezes pior do que do lado de cá. Os espanhóis esperavam ansiosos nos carreiros do contrabando, a chegada dos portugueses que sempre às costas ou à cabeça, carregavam por montes e vales tudo o que se pudesse mastigar. Era vê-los rodeados dos seus sitiantes clamando e pedido aquilo que eles chamavam "salbau", que não é nem mais nem menos do que o farelo do centeio, farelo esse, que era tirado à ração que ajudava a temperar a vianda dos porcos. Muitos deles, tal era a fome, que logo ali aos punhados se saciavam, alguns ainda, viam-se mesmo perecer ali em resultado da falta de capacidade de assimilação dos alimentos e também da avidez com que os ingeriam.

Agora os negócios não iam, de facto, nada bem e o Eusébio ressentia-se disso.

Depois de correr a coxia, de lá para cá e de cá para lá, foi dar com o «Alma do Diabo» de baixo do alpendre da tia Carminha a catrapiscar a mais bela moça da aldeia. Já lhe tinha metido a mão nas partes mais íntimas, mexia... e remexia..., «e ela quieta quem nem uma borreguinha». Enquanto isso o Eusébio dizia de si para consigo aquela lengalenga aparentemente maliciosa que soletrada á maneira da aldeia lhe dava um sentido brejeiro e o faziam sempre sorrir e muitas vezes corar aqueles que a ouviam: «aquilo é qu’é um bitcho p’ó caldo da begina ratchada ao meio com pêlos».1 Como se continuasse a não saber onde estava, gritou:

- Maximino...Ó Maximino!... Onde estás? Anda cá que preciso de ti,... quero falar contigo. Anda cá Homem.

O Maximino, inicialmente nem quis acreditar que o estavam a chamar. Contudo parecendo acordar de repente, assarapantado, fazendo gestos e modos de ajeitar a saia da cachopa, sempre respondeu:

- Já lá vou, só um momento... - entretanto,







1- Aquilo é que é um bicho para o caldo de vagens tenrinhas, partidas ao meio.

vagarosamente e com ar gingão, balançando ligeiramente o corpo, foi-se aproximando - então que há assim de tão urgente?



- Não é nada homem, é que temos que tratar da

nossa vida. Vais dizer ao Ezequiel, ao Ramiro e ao outros que não apanhem mais castanhas. Já não é preciso - volveu o Eusébio.

- Pois então o que é que se passa? Ainda ontem o senhor Eusébio dava ordens para apanharem todas as castanhas que encontrassem e que as pagassem a mais cem mil réis a arroba por causa da concorrência, e agora é isto? Ai eles não vão ficar contentes, não... com tanto prejuízo.

- Eu também não. Então corremos tudo o que é terra e terriola em redor para satisfazer a encomenda a tempo horas, e agora é isto? - insistia o Maximino.

- Ó homem as coisas nem sempre correm como a gente quer!... As castanhas já não seguem para o Brasil. É que aconteceu em Lisboa uma desgraça. Alguém fez a coisa bem feita... Mas hão-de pagá-las... - ripostou o Eusébio virando as costas e afastando-se.





Entretanto, o aparato era enorme, só superado pela azáfama e confusão reinantes. Naquele entardecer, quase noite de Outono o cintilar das luzes alaranjadas dos muitos carros dos bombeiros davam ao ambiente misto de alegria e de bizarro. O cruzamento da Avenida 24 de Julho com as passagens aéreas que dão acesso ao Cais de Alcântara, ali mesmo ao lado da majestosa ponte sobre o rio Tejo eram, um autêntico pesadelo naquela hora de ponta. O comandante José Águas afadigava-se a dar indicações e ele próprio tomava a dianteira dando o exemplo, nas muitas e minuciosas tarefas a realizar. As ambulâncias aqui,... a Magirus para acolá,...os guindastes em acção... Era uma roda viva. Os homens rãs esses aguardavam ordens. O comandante dos sapadores bombeiros preocupava-se antes de mais, de se inteirar da grandeza da catástrofe. Não se sabia se havia sobreviventes, se havia vítimas, se havia sequer vidas humanas em jogo. A verdade é que ali estava, parecendo uma ilha nascida de, um momento para o outro no meio do rio, o enorme casco do navio onde as gaivotas já abusivamente descansavam. Era o Natol, um navio cargueiro de grandes dimensões. Veio-se a saber logo de seguida que era um navio comercial com um carregamento de castanha que aguardava a totalidade da sua carga para seguir rumo ao Brasil. O comandante José Águas depois de se inteirar da gravidade da situação, deu de imediato e em primeiro lugar, instruções para que os mergulhadores fizessem esforços no sentido de se possível tentar salvar vidas. Depois de horas seguidas de pesquisas nas águas pardacentas do rio nada de significativo se concluiu. De seguida, aproveitando os guindastes do porto comercial, num misto de improviso, de arte, de técnica de quem sabia o que estava a fazer, os homens rãs foram mandados mergulhar de novo, com o objectivo de colocarem os ganchos em lugares estratégicos. O objectivo era, com a força conjunta dos três gigantescos guindastes fazer rodar sobre si, o Natol, obrigando-o a retomar a sua posição normal.

Muito se trabalhou, muito se suou, muita expectativa criada, quer pelo comandante quer pelos intervenientes e até pelos inúmeros curiosos que se juntaram no cais e que nem sequer sabiam bem o que se estava a passar, mas nada. Os resultados foram infrutíferos, a frustração foi enorme a angústia foi ainda maior, sabendo-se como se sabia que havia pelo menos oito a dez vidas em jogo. No final o Comandante José Águas , sempre mediático, limitou-se a dizer para os inúmeros órgãos de comunicação social que tinham ocorrido ao local para fazerem a cobertura em directo, numa conferência de imprensa improvisada:

- Meus senhores e minhas senhoras, senhores jorna- listas, como tiveram oportunidade de constatar aqui no local, fizemos os possíveis e até os impossíveis para tentar salvar as pessoas que se dão como desaparecidas. Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance, para pormos o navio na sua posição normal ou pelo menos numa posição lateral, o que nos facilitaria imenso as manobras, mas infelizmente nada resultou. Provavelmente como o Natol, é um cargueiro de grandes dimensões encalhou no lodo. Contudo aguardaremos uma maré mais viva para fazermos novas tentativas.

- Senhor comandante pode dizer-nos quantas pessoas se encontram no interior e se há alguma possibilidade de ainda estarem vivas? - perguntou um jornalista.

- Bem supomos que se encontrem no interior, de oito a dez pessoas, todos tripulantes. Quanto a estarem vivas,... as possibilidades neste momento são remotas. Mas pode dar-se o caso se de ter criado uma bolha gigante de ar no interior e haver ali sobreviventes. De qualquer modo já mandamos homens, fazer sinais sonoros no casco do navio, como certamente se terão apercebido, na expectativa de obter resposta, mas os resultados foram infrutíferos - respondeu o comandante Águas.

- Quer dizer senhor comandante que é o eterno problema, oficialmente há pessoas desaparecidas mas não há mortes?... É assim - perguntava agora um jornalista da televisão.

- Infelizmente ainda não podemos confirmar os mortos - ripostava José Águas.

- Qual era a nacionalidade dos tripulantes, perguntava um terceiro jornalista que se acotovelava para melhor se poder fazer ouvir.

- Estou em querer que eram todos nacionais - respondeu o comandante.

- Já se sabem quais as causas do acidente? - insistia o mesmo jornalista.

- Pelo que nos é dado conhecer não há indícios de nenhuma explosão, presume-se que pudesse ter a ver com o acondicionamento da carga. A carga terá sido mal distribuída o que fez desequilibrar o navio. E agora se me dão licença - terminava o Comandante José Águas, esgueirando-se pelo meio dos jornalistas.

Esperou-se por marés mais vivas uma, duas, ...muitas vezes ... mas a verdade é que o Natol passou a ser durante muito tempo poiso de gaivotas, roteiro turístico a partir do cais das colunas, obrigatório um dos mais visitados em toda a zona ribeirinha. Os alfacinhas, por seu lado depressa se habituaram a integrá-lo na paisagem e a ignorá-lo.



















































14-O Descalabro





O Eusébio como homem dinâmico que é, depressa se recompôs. Agora o seu negócio era outro. Arranjara uma equipa de homens de trabalho duros valentes e abnegados: Lá ia o Maximino, sempre ele, o Artur, o Ezequiel, o Ramiro e o Miguel. Cada vez que montavam no reboque do trator parecia que iam para uma romaria. Sempre alegres bem disposto com o chapéu a cair-lhes sobre a testa umas vezes por causa do sol outras porque já iam com um grão na asa. Desta vez o destino era o Picoto. O Eusébio tinha feito um negócio de arromba. Comprara um souto de castanheiros que esperava lhe rendessem pelo menos nove ou dez vezes mais quando acabasse de fazer a entrega na fábrica de madeiras lá para os lados de Oliveira do Hospital.

Ali chegados deitaram mãos à obra. As árvores eram todas monstruosas. Para as derrubar era preciso perícia. Aqui e ali aparecia uma ou outra carcomida pelas intempéries, pela idade centenar, pelos lobos ou raposas e ninhos e mais ninhos das mais diversas aves, com “tocas” que dariam para fazer delas autênticos abrigos de família. Estas eram, porém as mais difíceis de derrubar e as que davam menos “ganância”. Mas mais lá para baixo onde o terreno era humoso e denso, estava a menina dos olhos daquele souto de castanheiros. Era enorme, frondoso, em anos de boa produção chegava a dar uma dúzia de sacos de castanha. Agora depois de cortado via-se melhor a sua grandiosidade, chegava a ter mais de três metros e meio de diâmetro, tudo madeira maciça da melhor... Até a fábrica de motosserras "Serramoita" fez questão de aproveitar tal fenómeno para fazer publicidade à Marca. O Eusébio andava garboso, a sua proeminente barriga parecia ainda mais inchada, tal era a satisfação. Aquilo é que tinha sido um negócio!...

Infelizmente aquele tinha sido o último dos grandes negócios. Os Castanheiros começavam a escassear e os poucos que havia comidos pela tinta iam secando. E agora desde, que homens iluminados que nos governam, tiveram a brilhante ideia de colocar nas redondezas uma lixeira, então é que nem um escapou. Novos e velhos secam todos. Os fumos daquele inferno sempre a arder parecem encarregar-se de espalhar a moléstia por quilómetros em redor. O Eusébio pressionado pelos seu vários clientes: as fábricas transformadoras de madeira, os vendedores de madeira ricas e preciosas, e até as fábricas de pasta de papel não o deixavam em paz, querem mais e mais matéria prima; do outro lado os vendedores reclamavam, muitas vezes de forma desagradável os seus créditos; a exportação, ainda, para a Europa e para fora dela, quer de mobílias quer de madeira e até pasta de papel tinham crescido de forma inusitada. Era preciso manter os clientes e a imagem no exterior custasse o que custasse. E com isto tudo eram os madeireiros que sofriam na pele as pressões. Por outro lado a falta de renovação e a incúria a que tinham sido votadas as florestas, faziam com que cada vez escasseasse mais a matéria prima. O Eusébio andava de novo irritadiço, na sua mota que parecia minúscula debaixo daquele corpanzil, bem se afadigava a andar de um lado para o outro, de terra em terra a insinuar-se com todos os que lhe pudessem vender um ou dois castanheiros meia dúzia de pinheiros e até a preciosa madeira de alguma nogueira:

- Ó Senhor Germano tem que me vender o seu nogueiral aquele que tem lá para a regada sobretudo aquele exemplar único que dá sombra a quase toda a aldeia, olhe que lha pago bem paga - insinuava o Eusébio.

- Patrão, nem que ma pague a preço de ouro, não lha vendo - respondia o Germano

- Olhe que tudo tem um preço - volvia o Eusébio- não se arrependerá.

- Não arrependo não, que não lha vendo - teimava o Germano - não dará sombra a tanta gente mas ao menos colho todos os anos sacos e sacos de nozes para convidar mais de metade da aldeia. Sabe?!... é que nós por cá precisamos uns dos outros. E madeira há muita!...

O Eusébio precisava de realizar dinheiro como pão para a boca. Ele costumava pagar o que comprava, àquela boa gente, quase sempre quando lhe apetecia, mas pagava. Desta vez, a verdade é que pagamentos havia já de tal forma atrasados que agora, mais que nunca tinha que andar sempre a fugir deste e daquele porque as pressões para pagar um pinhal aqui, uns pinheiros ali, eram de tal ordem que até já se sentia incomodado e mal consigo próprio apesar de não primar por ser escrupuloso. As pessoas, não queriam saber, e por certo não sabiam mesmo, da sua situação. E tinham razão, pensava ele para consigo, o dinheiro era deles.

Às vezes contabilizavam aquele dinheiro durante anos e anos a fio, para os seus poucos gastos extras. Ir ao mercado da vila comprar umas roupas novas, uns sapatos novos, dar um remedeio à casa, comprar um bacorinho de engorda, um barranhão para fazer chouriças e morcelas, enfim de tudo um pouco que pudesse esquecer a rijeza e as privações a que estavam acostumados.

- Pois sim, está bem - o Eusébio desistia por ora, achava que não tirava dali nada, e mudava de assunto - olhe lá onde esta o seu rapaz, o José Augusto?

- Anda por aí, saiu logo de manhã cedo com a sua perdição, que são os pombos. Agora deu em aproveitar todo o tempo que tem livre para os treinar. E olhe que já tem corrido França e Aragança, mas eles cá voltam sempre. E são muito bem ensinados - volvia o Germano.

Mal eram ditas estas palavras e logo aparecia o José Augusto.

- Ei rapaz isso é que é gozar!...- chalaceava o Eusébio. - Então os campeões já estão bem treinados? Deixa lá que qualquer dia ainda vens trabalhar para mim, e olha que há-de ser um bom emprego.

Mal acabara de dizer estas palavras, e é interpelado pela Beatriz que surge repentinamente numa marcha forçada, bamboleante, quase a correr:

- Senhor Eusébio!... Senhor Eusébio!... Estão a chamá-lo com urgência ao telefone. Beatriz era uma mocetona, mais para o cheinho, bem torneada, já entradota na idade, nunca se quisera casar, mas continuava apetitosa embora sempre arisca. Dedicara-se antes a cuidar dos pais, era assim como uma assistente social por conta própria. O Eusébio era por assim dizer um hóspede de casa, tratado com toda a consideração, as más línguas até diziam que haveria ligações estreitas e um triângulo amoroso onde entrava também a mãe da Beatriz. Tretas!... Que a Beatriz sabia escolher bem. Como duma vez, em que pela calada da noite o José Augusto ainda rapazote lhe foi bater à janela do quarto, atirando cá debaixo umas pedrinhas. Ela como já o esperasse não se fez rogada, abriu a janela com jeitinho deitou a cabeça de fora e recomendou-lhe em voz baixa e ligeiramente embargada pela ansiedade, que trouxesse a escada de madeira que estava encostada ao palheiro. Ele assim fez. Essa noite a Beatriz ensinou tudo ou quase tudo o que o amor tem de segredos. Durante o dia, como a vigilância era mais apertada, a artimanha era outra. O José Augusto rondava a casa da Beatriz, conversava com toda a gente menos com ela. O código era esse. A Beatriz quando achava o momento adequado saia de casa simulando ir dar de comer aos porcos, que por sinal estavam muito bem tratados, e num repente o jovem, José Augusto já a traçava pela cintura cobrindo-a fogosamente de beijos e carícias.

- Pois sim vou já - e dirigindo-se ao José Augusto com uma palmada nas costas, retorquiu - não te esqueças ainda hás-de trabalhar para mim que eu sei que és uma pessoa muito capaz!...- e dito isto virou as costas nem ouvindo a resposta daquele. Atirando acenos e cumprimentos a quem encontrava, lá foi galgando a calçada portuguesa.





O Eusébio pegou na sua minúscula motorizada e saltou-lhe para cima. Parecia ter montado um carneiro. A máquina ficou ainda mais diminuída quase parecendo rebentarem os pneus. Mas tudo bem...Hirto que nem um soldado de sentinela... lá foi ele.

Quando chegava à curva da Ribeira de Arnes é que a coisa ficava preta. Uma curva difícil, em cotovelo, a descer, íngreme, ainda por cima com a inclinação ao contrário. Das primeiras vezes que lá passou só se deu conta no meio dum rebulhão de silvas e para de lá sair foi o cabo dos trabalhos, ficou picado que nem um assador.. Agora cada vez que lá passa quase que para. Já chegou mesmo a parar, descer da mota, pô-la no descanso e na calma que lhe é habitual, quando anda, contorna a curva, vê se lá vem movimento. Se vier, primeiro deixa-o passar, só depois avança. É que o seguro morreu de velho. Na catraia do bacalhau a paragem obrigatória é por outra razão bem mais nobre. Vai cumprimentar o Jaime Graça dos Leitões. Ele sabe que ali pode homenagear o deus Baco e fazer inveja a Pantagruel. É que ali come-se leitão chamado da Bairrada, que o não é, mas nem por isso deixa de ser tão bom, ou ainda melhor. Uma delícia, um verdadeiro acepipe que ele partilha com os deuses. Mas... como os deuses não pecam ele come por eles.

Aliás o Jaime Graça é um velho e solidário companheiro seu, sendo um nababo, capaz até de comprar o melhor dos automóveis, tal como ele também nunca teve engenho e arte para tirar a almejada carta de condução. De tal modo que anda a pé ou de «rela».

Chegado à cidade, o Eusébio encostou a mota dirigiu-se a uma cabina telefónica e esperou que a telefonista lhe fizesse a ligação. Numa linguagem à medida da sua cultura, chamou:

-Talô!... Está... Talô. Ó comandante eu vou já aí... esta bem não me demoro. Era só para saber se o encontrava. Ai não quer que vá aí a sua casa?!... Está bem. Olhe então estou aqui no Café Mondego2, mesmo ao pé dos azulejos do cão da Serra da Estrela . Cá me encontra...



Enquanto isso a beira do passeio em frente à esquina da Madrilena numa aparente amena cavaqueira conversavam o Nascimento e o Zézé sem nuca tirarem os olhos do seu objetivo. Estavam quase a deitar a mão aqueles que sabiam serem os principais instigadores dos grandes incêndios que frequentemente lavravam na região ano após ano.



O comandante saiu à socapa do local de trabalho e num pé depressa chegou à entrada do café Mondego. Desconfiado olhou em todas as direções e estarreceu quando viu do outro lado da rua pessoas que eram com frequência do seu convívio, mas que desta vez dizia-lhe o sexto sentido, que não estavam ali para o cumprimentar, mas nem por isso deixou de entrar.



Os agentes esperaram e desesperaram, à porta do café, mas nunca mais viram o rasto daqueles que supostamente seriam o «maior troféu que alguma vez viriam a exibir».













































































2- O Café Mondego , com um conjunto de belíssimos azulejos, foi maugrado transformado em agência bancária, posteriormente numa ótica e sabe-se lá o que o espera…



Epilogo



Esta é uma homenagem a uma aldeia com menos de 100 habitantes, que contra tudo e contra a má governação deste país ainda resiste.















O autor